quarta-feira, 23 de setembro de 2015

NÃO QUERIA SER ÁRVORE...


para Regina Casé,

Frans Krajcberg

e às tristes Sibipirunas de Piracicaba.


Com certeza,
a maninha Sibipiruna,
lá de Silva Jardim,
com tanto carinho e respeito,
por boa senhora plantada,
terá mais firmeza,
e um melhor fim
que as de Piracicaba...
 
Nessa teimosia, desajeitada,
de a esmo germinar e viver
– sina que nunca se acaba,
o nosso jovenzinho Ingá,
com amor plantado lá
sorte e vida melhor, há de ter...
                                                                     Com certeza, terá!
V(inga)rá!
 
            Queria poder, por mais tempo, doar-me, partilhar a minha existência, de tão antiga espécie. Acolher, com minhas flores e frutos perfumados. Abrigar, com extensas sombras, entre os aromas das minhas ramagens.
Nas cidades, assusto-me. Trazida para jardins e caminhos, queria vicejar em paz, não mais ouvir o ronco das vorazes serras elétricas, mutilando-me anos de vida. Sem piedade, por razões quaisquer, fustigam minha dignidade ou podam-me num arremedo da minha majestade. Fazem-me desaparecer das paisagens urbanas ou, nas vias, entre fios, mal consigo crescer, estender-me... Nas serrarias, verdadeiro inferno, jogam-me dos caminhões e vou rolando, chorosa, pelas pranchas cheias de lascas de outras irmãs. Içada, sou rasgada em tiras e ripas, reduzida a serragem, pó. Mas, consolo-me... Ao pó, não haveremos de retornar?
 
Queria poder, por mais tempo, dar repouso sob o manto das minhas galhadas. Dar mais cores ao canto dos passarinhos e amenizar, tornando menos dura com minhas folhagens pelo chão, a sua passagem pela vida, amigo.
Nos campos, ái, nos campos... Ardo ao vento, à toa... Pereço imolada em queimadas criminosas, sem sentido. Nos bosques, mãos infantis – por que crianças? – revolvem minhas achas nas estufas fumegantes de fornos ocultos – por que ocultos? Quisera que as labaredas que me consomem fossem verdes e não rubras, e ardessem frescas como a menta. Mas estalo toda, carbonizo junto com tocas e ninhos. No ar, o cheiro forte que ressuma, acre, é de vida e morte – lida e sorte – que em fumos se esvai! Triste manto cinza... É rasto calcinante de cruel ambição, que relega tudo a cinzas, pó. Mas, resigno-me... Ao pó, haveremos de retornar...
 
          Saudosa, pergunto: Cirandas, piques, balanços... Por onde andam as nossas crianças? Por quanto mais tempo, ainda, “minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá...”?
          Generosa, perdôo a todos e não ensejarei vingança, jamais, aos que me sacrificam. No último dos seus dias, indefeso e “imóvel, em sua forma definitiva”, ainda assim lhe serei útil. Serena, irei protegê-lo, guardá-lo com minhas tábuas e sombrear a sua última morada. Perdôo a tudo, não tema, não haverá cobrança. Em plena harmonia, sobrevivo neutra, servindo sempre... Continuo sendo tudo, a roda que movimenta, o remédio que salva, o estrado que descansa. Teto, calor, alimento, música... Brinquedo, oficina, livro... Virá, espero, o dia em que inventarão resinas que me substituam...
            No entanto, prossigo em paz com minha natureza, sempre exuberante e atrativa. Por minhas essências, tintas e sementes, navegadores deram voltas ao mundo... Por séculos, movimentaram-se gentes e dinheiros, através de mares e continentes.
            Hoje, aqui, roubam-me nas florestas. Madeira nobre!, gritam. Ora, na Natureza, todos somos nobres em nossas próprias naturezas. Há nobreza, até em quem me corta. Querem minha carne, meu sangue – lenho e seiva – até o meu cerne... Sobrar cavaco? Sequer!
            Agonizo. Decepada de minha copa, frondosa, e de minhas raízes, garras partidas, tombo... Agora mesmo vou, toco ridículo, à deriva pelos rios sinuosos deste Brasil, boiando sem vida. Levam-me empilhada em caravanas clandestinas, entre o que ainda resta de selva, órfã de mim. Sigo não mais como mata, altaneira, mas deitada em funeral, morta! Embarcam-me, silenciosamente. Não em sinal de reverência, mas por solerte, odiosa necessidade. Sou levada, sorrateiramente – ninguém vê? – para terras de outros mares.
Mas... Já não vim ter a esta mesma terra, séculos atrás, na forma de naus e caravelas?... Não servi de altar, numa Primeira Missa? E há dois milênios, não servi de berço a um certo Menino? Pouco depois me fizeram lança, que matou a outros meninos... E mais tarde, quando Aquele se tornou Homem – estremeço! – servi-Lhe de cruz!
Como chamar a atenção dessa espécie, tão insana – humana?
            Cessem os mares, parem os ventos! Minha espécie, muito ancestral à sua, está morrendo... Que pobre destino, por seu desatino...
Oh, gemo... Não pela força do vendaval, que me retorce, ou do raio, que me destroça, mas pelo meu raso futuro, neste quinhão. Rasa cova, pedregosa, não de plantio, mas de desfeitio.
Senhor, Senhor... Perdoe minha desesperança, perdoe esta sua criatura... Árvore... Ser árvore... Como não queria mais ser árvore!
 
Contudo... Mesmo assim, neste incerto desvão, germinarei, vicejarei, abrigarei outra vez. Ah, como sou teimosa... Nem que seja só por mais uma vez – a última – insisto, para poderem brincar, desenhar, ler e escrever, todos, à minha sombra...
  

Sergio Roberti de Nucci

São Paulo, SP, 15 de agosto de 2005