Curta, mas sem dúvida agitada e
fértil foi a gestão de Mario de Andrade como Diretor do Departamento de
Cultura, de julho de 1935 a maio de 1938. Suas realizações, e mesmo o que ele
apenas criou, sem chegar a implantar diretamente, foram muito além do que a
curta memória paulistana registrou.
E entre os eventos mais
esquecidos, figuram, por certo, os Concursos que o Departamento de Cultura
realizou nos anos de 1936 a 1938.
OS CONCURSOS MUSICAIS DE 1936
A Revista Brasileira de Música,
de março de 1936, vol. III, 1º fascículo, registra, na seção Concursos, o
regulamento de um concurso instituído pelo Departamento de Cultura da
Prefeitura do Município de São Paulo. São duas as categorias: peça sinfônica e quarteto
de cordas. Resumidamente, o regulamento é o seguinte: As obras devem “se
inspirar nos caracteres, tendências e processos rítmico-melódicos da música
nacional brasileira, de preferência apresentar uma temática de livre invenção
do próprio compositor, sem que sejam utilizados temas colhidos diretamente do
folclore musical brasileiro”. Além disso, as peças deveriam ter a duração
mínima de 12 minutos, e os originais deveriam ser entregues até o dia 31 de
outubro de 1936.
No mesmo tópico, criava-se o
concurso de uma Suíte para Banda, que teria duração mínima de 10 minutos e
máxima de 25 minutos, ser de meia dificuldade quanto à execução e conter “uma
série de danças populares nacionais, cujos temas serão de preferência colhidos
no folclore musical brasileiro”. Os originais deveriam ser entregues até o dia
30 de setembro de 1936.
Na p. 87 do vol. IV, na seção
Registro, foram publicados os resultados dos dois concursos de 1936. Quanto à
categoria peça sinfônica ”foram apresentados 14 trabalhos e contemplado com 1º
Prêmio, o poema sinfônico ‘Rei Mameluco’, de João de Souza Lima (São Paulo),
com 2º prêmio, a Sinfonia em ré, de Francisco Casabona (São Paulo), com Menção
Honrosa as composições Festa na Vila, de Dinorá de Carvalho (São Paulo), Ubirajara,
de Carlos Pagliuchi (São Paulo) e Alvorada, de José de Lima Siqueira (Rio de
Janeiro). A Comissão Julgadora desse Concurso foi integrada pelos Profs. Francisco
Murino, Francisco Mignone e o regente de orquestra Ernst Mehlich”.
O concurso de Quarteto de Cordas
teve 16 trabalhos apresentados. Os contemplados foram: 1º Prêmio, Quarteto, de
Silvio Motto (S. Paulo); 2º Prêmio, Suíte, de Helza Cameu (Rio de Janeiro); 3º
Prêmio, Impressões Brasileiras, de Gabriel Migliori (S. Paulo). Foram
distinguidos com Menção Honrosa as composições Fim de Tarde, de Assuero
Garritano (Porto Alegre), o Quarteto Jacaré, de Ernani Braga (Recife), e o
Quarteto Brasil, de Luiz Oliani (S. Paulo). Souza Lima, Mario de Andrade e o
Quarteto Haydn julgaram os trabalhos.
Para o concurso de Suíte para
Banda, somente três trabalhos foram apresentados, e os mesmos foram premiados,
na seguinte ordem: Suíte Brasileira, de Hostílio Soares (Minas Gerais), recebeu
o 1º Prêmio; a Suíte Mineira, de Elviro do Nascimento, recebeu o 2º Prêmio, e a
Suíte Brasileira, de Luiz Oliani (São Paulo), foi contemplada com o 3º Prêmio.
Os trabalhos foram julgados pelo Tte. José Machado, o Major Antão Fernandes e o
Prof. Silvio Motto.
OS CONCURSOS MUSICAIS DE 1937
A mesma Revista Brasileira de
Música, de 1937, vol. IV, 1º e 2º fascículos, publicou na pág. 67 as condições
para participar de concurso de uma peça instrumental. Deveria ser “de forma
livre, para pequena orquestra de 10 a 15 instrumentos já nacionalizados, inspirada
nas composições instrumentais dos ‘choros’”. Em item à parte, subentende-se que
entre os instrumentos já nacionalizados se inscreviam também os instrumentos do
quarteto de cordas. O 1º parágrafo esclarece que “as obras, de qualquer maneira
deverão se inspirar nos caracteres, tendências e processos da música nacional”.
As obras instrumentais deveriam ser entregues até 30 de novembro de 1937.
Na mesma ocasião, também eram
publicadas as condições de um concurso para peça coral “constituída de uma
série de pequenos corais sem acompanhamento, cuja execução total atinja mais ou
menos oito a dez minutos. (...)”. As obras seriam compostas sobre poesias ou
estrofes soltas, extraídas da ‘Satírica’ de Gregório de Matos, edição de
Afrânio Peixoto, em 1933, da Academia Brasileira de Letras, vol. 4º e 5º. O
prazo de encerramento da entrega das peças era 31 de outubro de 1937.
O livro Camargo Guarnieri –
Expressões de uma vida, de Marion Verhaalen, registra a premiação do grande
compositor nesse concurso, nas duas categorias. A peça instrumental de forma
livre que Camargo Guarnieri apresentou, Flor de Tremembé, para quinze
instrumentos solistas, tem duração de 7 minutos e foi composta em 1937. Os
instrumentos são os seguintes: flauta, clarineta, saxofone barítono, trompa em
fá, trompete em dó, trombone, harpa, piano, chocalho, reco-reco, agogô, cuíca,
dois violinos, viola e violoncelo. A autora do livro esclarece: ”Em 1937,
Guarnieri enviou a peça a um concurso organizado pelo Departamento Municipal de
Cultura de São Paulo. Ela recebeu o primeiro prêmio. Provavelmente, foi
estreada na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, em 27 de maio de
1940”.
Quanto às peças corais, o júri
foi composto por Agostino Cantù, Arthur Pereira e João de Souza Lima, que
avaliou, no dia 13 de dezembro de 1937, as peças apresentadas. Ainda conforme
Marion Verhaalen, Camargo Guarnieri enviou, sob o título de Coisas deste
Brasil, um conjunto de três peças: Reprovações, A gente da Bahia e Aos mesmos
Caramurus, que receberam o 1º prêmio. As peças provavelmente estrearam em março
de 1938.
O 2º lugar foi conquistado pela compositora
mineira Dinorá de Carvalho, que apresentou Procissão de Cinzas em Pernambuco e
Caramurus da Bahia. Clorinda Rosato, compositora paulista, conquistou Menção
Honrosa com seus Quatro Corais, que são feitos sobre os trechos da mencionada
Satírica: Anica, o que me quereis; Ouve, ó amigo João; Preso entre quatro
paredes, e Quando o mundo se acabar.
As peças premiadas estrearam no
dia 14.10.1938 e foram reapresentadas inúmeras vezes pelo Coral Paulistano, no
decorrer de mais de 25 anos. O compositor José Barbosa de Britto, também
premiado, teve sua peça Babu, como há de ser isto? igualmente reapresentada
nestes concertos posteriores.
O CONCURSO MUSICAL DE 1938
O mesmo
volume da Revista Brasileira de Música consigna ainda que estão abertas as
inscrições de concurso de uma Abertura para Banda, comemorativa do Cinqüentenário
da Abolição dos Escravos e, por isso, “construída obrigatoriamente com temas
afrobrasileiros, colhidos no folclore”. A duração estabelecida seria de no
máximo 12 min. Prazo de entrega: 30 de abril de 1938.
Nesta
data, 30 de abril de 1938, havia grande confusão política no Brasil, devido ao
golpe de Getúlio Vargas e o estabelecimento de uma ditadura, que durou até
1945. Assim, em 23 de maio de 1938, Mario de Andrade redige e encaminha ao Sr.
Francisco Pati, que o sucedeu na direção do Departamento de Cultura, a
“Exposição dos atos e conseqüências da Missão Folclórica atualmente em viagem
pelo Norte do Brasil”. Nela, expõe as razões para a Missão continuar, e o
consegue. Do mesmo modo, é provável que o então diretor tenha mantido o
Concurso cujos trabalhos já haviam sido recebidos, e levado o Concurso a cabo.
O júri
que julgou as obras do Concurso de Abertura para Banda foi integrado pelos Srs.
Tte. José Machado, regente da Banda da Força Pública, Prof. Silvio Motto, do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e Prof. Martin Braunwieser,
representando o Departamento de Cultura.
As
obras premiadas foram três: Abertura Curumiassu, de Savino De Benedictis; A
preta minha, do Prof. Luiz Oliani, e Abolição – Abertura, de Franklin de
Carvalho Jr. Estas informações foram colhidas em nota jornalística da
documentação de Savino De Benedictis. A carta que este autor recebeu, avisando
da premiação, data de 10 de outubro de 1938 e é assinada pelo então Diretor da
Divisão de Expansão Cultural do Departamento de Cultura, o poeta Guilherme de
Almeida.
UMA CURIOSIDADE: ILUSTRAÇÕES LITERÁRIAS DE
OBRAS DOS CONCURSOS
(O
original trazia os textos em antiga ortografia, e aqui estão copiados na ortografia
atual)
A Suíte
Mineira, de Elviro do Nascimento, 2º Prêmio no concurso de 1936, traz em sua
partitura a seguinte descrição: “Allegro – Esse tempo representa um canto em
coro pelos roceiros que vão em direção às matas, num ‘mutirão’. Ouvem-se
diversas linhas melódicas, genuínas do regionalismo mineiro, onde os
instrumentos de madeira em ‘staccato’ imitam a viola. / Intermezzo – O sino da
Capelinha do arraial, em dia de festa, toca, chamando os fiéis para assistir
aos atos religiosos. Antes do início da missa ouve-se, no coro, a afinação dos
instrumentos. Começada a cerimônia, o coro entoa um canto com linhas melódicas
alusivas ao ato, porém com a simplicidade da música camponesa mineira, com
imitação de harmonium pelos instrumentos de palheta. / Desafio – Retrata, o
tempo, um baile no término da festa na roça, cujo trecho melódico é diálogo, no
qual há imitação dos deslizes de violas empunhadas pelos roceiros. / Cateretê –
Dança de origem selvagem africana. É inspirado à moda mineira. Há imitações de
viola, de pandeiros, dos cantos plangentes em dueto, enfim, o equilíbrio do
batuque, ritmo original dessa dança, terminando com alegria e vibração”.
O Quarteto de Cordas de Gabriel Migliori, 3º
prêmio do Concurso de 1936, traz o seguinte texto: Saci-Pererê (Impressões
Brasileiras): 1. Tamba-tajá; 2. Saci-Pererê; 3. Cantiga; 4. Boi-bumbá, dança.
“Saci-Pererê:
Silfo. Gnomo das florestas e dos campos do Brasil. Negrinho, de uma perna só,
um barrete encarnado na cabeça, um olho vermelho, muito aceso, no meio da
testa. Bailarino. Faz tranças na crina dos cavalos, com assobios agudos. Os
cavalos que galopam dentro da noite silenciosa. / Bailarino! Símbolo. Alma da
mata cujas folhas tremem à sua passagem, ante o alarido das aves e o pânico dos
bichos. Espírito da Raça. – Ágil, matinal, anímodo, irreverente! Saci.
Brasileiro como há poucos. Serelepe e malicioso. / Aparece nos redemoinhos...
As velhas crédulas jogam terços e peneiras no meio do círculo de poeira
remexido pelo vento, onde dança o Saci. Ninguém não conseguiu pegar ele não! O
Saci-Pererê é bailarino e precisa comparecer em todas as festas da floresta./
Saci-Pererê... / Negrinho. De uma perna só. Um barrete vermelho na cabeça. De
uma perna só. Um olho vermelho, muito aceso, no meio da testa. / Aparece à
meia-noite, espantando os cavalos... Um assobio agudo... / Nasceu das matas e
dos campos. Nasceu da poesia verdadeira da gente simples... / Saci-Pererê... /
Silfo. Gnomo das florestas e dos campos do Brasil... / Símbolo. / Dançarino que
nem quê!”
A
partitura de regência de Curumiassu – Abertura, de Savino De Benedictis, 1º
Prêmio no Concurso de 1938, traz uma Nota Explicativa: ”Temas elaborados –
Yayá, você quer morrer e Papae Curumiassu (os trechos de cada melodia estão
transcritos em pauta, só a linha melódica). / A introdução é formada de
fragmentos do 1º tema, o qual aparece em sua totalidade na letra A,
desenvolvido até reaparecer novamente na letra B invertido para o Saxofone
Soprano e Oboé, continuando seu desenvolvimento até aparecer o 2º tema na letra
C, acompanhado por um movimento contrapontístico que lembra o 1º tema. /
Terminada a exposição temática ele aparece novamente, no desenvolvimento por
diminuição em forma fugato, letra F. / O autor compôs a presente abertura sobre
os dois temas acima mencionados colhidos no folclore afro-brasileiro;
modificadas, adaptadas e desenvolvidas conforme as exigências da arte e do
bom-gosto”.
Note-se
que o texto de Elviro do Nascimento comenta diversos momentos da vida no campo,
e o de Gabriel Migliori descreve apenas o Saci-Pererê, personagem exclusivo da
mitologia brasileira. Já o texto de Savino De Benedictis explana os recursos
musicais utilizados na composição.
Uma descrição do mundo real, uma
viagem pelo imaginário, uma lição de música...