À primeira vista, o ateliê de
Aldemir Martins lembra uma feira-livre do Nordeste, com seu colorido, seu
primitivismo pitoresco. Aqui e ali,
objetos dos mais variados – obedecendo a uma tônica: todos estão ligados à vida
e às viagens de seu dono, um divulgador da arte brasileira por esses mundões
afora.
Nascido no Ceará e lá criado,
Aldemir traz hoje, em sua arte, sempre um quê do Nordeste – “coisas que estão
no meu subconsciente, pois me criei lá e lá vivi até os vinte e dois anos”.
Depois, o Sul: “Pois há vinte anos não existia a profissão de pintor. O artista
era quase um marginal. No Ceará, era pior ainda. Então vim para o Sul: primeiro
o Rio, onde passei um ano; depois, São Paulo”.
Entretanto o Nordeste, com sua
força, deixou marcas indeléveis no artista: sua pintura, seu desenho ou sua
gravura trazem sempre um pouco da paisagem nordestina, os cangaceiros, a beleza
agreste da terra sempre tão seca e tão amada. “Minhas reações são nordestinas.
Nota-se isso nos meus quadros: que estou preso à terra, que meu inconsciente
está ainda nas coisas que vi e vivi durante a infância e a adolescência”.
O CANGACEIRO DA ARTE
“A princípio fui paisagista –
sabe, aquela paisagem seca, com ingazeiros. Mas já comecei rompendo com o
Acadêmico. Depois evoluí, mas não mudei de posição”. No Ceará ainda pintava a
óleo; depois, por muito tempo ele ficou só nos desenhos e nas ilustrações; só
agora, com a descoberta do acrílico, ao qual se adapta muito bem, retomou os
pincéis.
Espalhados no meio de livros,
enfeites nordestinos, máscaras africanas, sapatos de cangaceiros, estão seus
quadros e seus desenhos. Ele já fez quase de tudo em matéria de Artes
Plásticas: ilustrações, jóias, cenários, cerâmica. Agora pretende começar
Escultura. Uma grande tela está sendo trabalhada. O tema: flores.
“Se eu não fosse pintor, seria vagabundo. Ou um
cangaceiro. Isso, um cangaceiro: um revoltado contra o estado de coisas, um
lutador. Eu já sou um lutador, só que não luto sozinho; luto com sequazes que
talvez nem saibam que estão lutando: os artistas. Sim, a classe dos artistas
luta muito”.
Ele sorri, muda de assunto: “Pois
é, essas coisas todas eu trouxe de minha viagens. Não, não fui ver nada, não: fui mostrar. Não sou um viajante que nota muito a paisagem: me interessa
muito a convivência humana. O que eu trouxe de minhas viagens está aqui, nessa
desordem. Mas é que eu sou anti-militar por excelência: nada de ordem. As
coisas ficam onde estão e como estão, numa desorganização arrumada. Ali,
naquela estante, os livros que consegui sobre o cangaço. Eu precisava aprender
tudo sobre os cangaceiros, inclusive roupagem, para fazer meus desenhos e
ilustrações, então comprei todos os livros que encontrei que tratassem do
assunto”.
Seus cangaceiros são famosos, mas
não só eles: os galos, os peixes e muitos outros: “Sou de ter fases com paixões
momentâneas sobre um assunto. Sempre, sempre trabalhei assim: posso esgotar e
refazer o tema. Tive uma fase em que fiz dezoito retratos de Maria – a mulher
imaginária, a mulher de todos nós. Em ilustrações, de que gosto muito, chego a
estudar minuciosamente o texto que devo ilustrar. Procuro ser fiel à idéia do
autor: para as ilustrações de ‘Os Sertões’ adquiri um livro raríssimo de
botânica, no valor de NCr$ 400,00”.
“Executar um quadro, eu executo com rapidez.
Mas, antes disso, elaboro com lentidão, cuidadosamente. Ao contrário dos filhos
– um pai sempre gosta deles – eu geralmente não gosto dos meus quadros. Para
mim, eles são todos personagens, um mito que eu crio. Quando os começo, tenho
em mente que aquele pode ser a minha obra-prima, ou o que todos considerarão
assim”.
ARTE RUDE E REQUINTADA
Aldemir se considera socialmente extrovertido, mas na vida
privada, calado e tranqüilo, “quase um sorumbático”. E na arte se retrata sua
personalidade: “O que faço é sempre simples em temas, mas a linha é requintada,
embora haja quem diga que o meu forte são as cores, que eu considero cruas.
Minha arte, eu a sinto rude como as comidas nordestinas. Eu sou muito
pretensioso. E indócil, como todos os artistas, que não gostam de seguir a
trilha de todo mundo, querem um caminho diferente”.
“Nos temas, sou de grandes
contradições: pinto flores e cangaceiros. Flores para alegrar a todos, felizes
e infelizes; flores em todo lugar, não só nos jardins dos ricos. E assim se
volta ao Sermão da Montanha: ‘Olhai os lírios do campo...’ ”.
Aldemir é o artista brasileiro
mais conhecido no estrangeiro. E o primeiro artista genuinamente brasileiro a
ser premiado pela Bienal: “Mas encaro isso como acidente. Pois é, lá estava a
pedra, no meio do caminho, e eu dei a topada. Ou então, eu ia passando com os
desenhos embaixo do braço (assim como a gente às vezes passa embaixo da escada
de um pintor de paredes e recebe uns respingos de tinta) e o prêmio me caiu na
cabeça. Não vejo nisso muitos méritos. Mas até hoje ninguém me perdoou por
causa disso”.
“A Arte deve ter comunicação,
mensagem, linguagem. É como fazer um bilhete ou carta, romance ou novela. O
artista nasce e morre como todo mundo. Sua técnica permanece. Todos farão o que
ele fez ou ele fez o que todos os outros fizeram. Com o tempo, a técnica assume
sua personalidade. Algum dia, alguém olhará este quadro e dirá: Este é Aldemir
Martins”.
“Arte é como o amor: ama-se. Não
entendo porque se discute tanto Artes Plásticas. Assim o povo acaba conhecendo
muito mais de ouvido que por ver. E um quadro é para ser visto. Artes Plásticas
não se explicam com palavras: a imagem é fechada, misteriosa, esotérica.
Olha-se e pronto, já se sente tudo. Os pincéis têm a força da baioneta”.
Revista Diário do Povo
Campinas, SP, 16 de março de 1969 – Ano I, nr. 2, p. 40-1
(Ilustrado com fotos de Léo Brilho)
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