“Como neutralizar a influência negativa da
literatura escrita antes dos novos conceitos de cidadania se estenderem a todos
os cidadãos?”
Veio uma vizinha pedir um livro emprestado. Eu o
tenho, portanto, emprestei, já que é uma menina a quem posso emprestar com a
certeza de que terei o livro devolvido e em boas condições. Ela tem apenas onze
anos e estuda com muito afinco: faz questão de aprender.
Mas uma coisa me intrigou: para que fins ela
está lendo As aventuras de Tom Sawyer, do norte-americano Mark Twain?
Fui até a casa dela para perguntar. E a
resposta era justamente a que eu suspeitava e temia. Ela é aluna da sexta série
e vai ler o livro para um trabalho de Língua Portuguesa.
Mas, em Língua Portuguesa, os alunos não deveriam
ler livros escritos originalmente em Língua Portuguesa? Qualquer pessoa de bom
senso perguntaria isto. E por diversas razões.
Em primeiro lugar, entra a questão da própria
linguagem. Um livro como este tem diversas traduções – o meu é traduzido por
Monteiro Lobato (Editora Brasiliense), com algumas intervenções pessoais no texto,
mas é muito bem escrito. Não li em outras traduções, mas tenho também um
exemplar com tradução de Alfredo Ferreira (Editora Vecchi). Hipoteticamente
falando, podemos ter traduções menos qualificadas que estas, e até versões
condensadas.
Em segundo lugar, o livro mostra a realidade de
um outro povo, em outra época. A literatura, afinal, é o espelho do país onde é
criada. Nós, brasileiros, temos “espelhos” literários de excelente qualidade,
alguns escritos recentemente, falando de nossa realidade como ela é, neste século.
As aventuras de Tom Sawyer é um livro escrito no
século dezenove (publicado em 1876) e narrando fatos de pelo menos trinta anos
antes, da infância do autor. Assim, ele se reporta a uma conjuntura social
radicalmente diferente da nossa. É um ambiente de país escravocrata (como o
nosso, aliás, também foi) onde o preconceito foi e é mais acirrado do que aqui
no Brasil. Esse livro não se limita a descrever a situação do negro de uma
forma perversa, embora corresponda à realidade daquela época, mas também tem o
índio (Injun Joe) como o bandido da região. Em resumo, é um clássico da
literatura infanto-juvenil, mas deve ser lido com espírito crítico, coisa que uma
criança de onze ou doze anos ainda não tem. E que provavelmente nunca terá, se continuar a estudar em uma
escola onde esses critérios (ou falta de critérios) são mantidos.
Mas o pior de tudo é que, sendo uma escola
pública, provavelmente muitos alunos afrodescendentes estudam nela. Como fica a
auto-estima dessas crianças? Quantas e que espécie de brincadeiras agressivas podem
ser feitas pelos colegas, atingindo os afrodescendentes, com base no texto
deste livro? E, mesmo se ninguém falar nada, como será o sentimento de
humilhação dessas crianças, diante de um texto com esses elementos, explícitos
ou subjacentes?
Quando minha filha mais velha ia à escola,
aprendeu uma música profundamente racista e eu escrevi uma carta reclamando. A
música foi abolida do programa da escola. Mas, o que ainda hoje lamento, é ter
constatado que aquela mensagem racista nem sequer tinha sido percebida pela
equipe da escola.
Espero sinceramente que alguém faça alguma coisa
quanto à presença do racismo nos textos escolares. Ou vou me sentir não só
lamentando, mas também revoltada com a percepção de que a Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo permite, endossa e releva uma distorção desse nível, por
puro descaso. Ou por falta de percepção da realidade subjacente naquilo que se
propõe a ensinar.
Em 24.5.2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário