Nunca pensei que algum
dia escreveria me dirigindo aos médicos, mas eis que este é um momento
propício.
O novo milênio começou
há apenas treze anos. Diante dessa percepção de algo tão novo, parece que mesmo
a realidade de um passado recente, é algo muito distante. Há todo um marketing
do futuro, um futuro só de tecnologias, superposto a um marketing do
esquecimento e desprezo às conquistas difíceis e sofridas do passado.
Por isso me dirijo hoje
aos médicos. Dentro desse contexto hostil ao passado, que permeia o ensino em
geral, é bem possível que nenhum dos formandos em medicina, dos últimos dez
anos, saiba quem foi, por exemplo, Albert Schweitzer.
Conheço muito mais o
Albert Schweitzer músico e musicólogo que o Dr. Albert Schweitzer médico, mas o
admiro igualmente pelas duas atividades. Pois o grande e reconhecido músico que
ele era achou não ser suficiente tudo o que fez pela música, pela filosofia,
pela teologia, assuntos de seu pleno domínio e, aos trinta anos foi estudar
medicina na mesma universidade onde já era professor.
Formado, partiu para a
África, instalando-se no Gabão, antiga colônia francesa, acompanhado da esposa,
que além dos cursos de arte em que já era professora, cursou enfermagem para
ajudá-lo. Apesar de quase não ter aparelhos, pois muitos não existiam, de não
entender a língua nativa dos africanos, tinha sensibilidade, tinha bom-senso e,
sobretudo, amava os seres vivos. E não os diminuía por serem menos favorecidos
que ele próprio.
Periodicamente voltava à
Europa, para dar concertos, fazer conferências sobre Bach e publicar seus
livros, com a renda dos quais mantinha boa parte de seu trabalho no Gabão. Conseguiu
inspirar gerações de médicos que compreenderam o fundamento da profissão que escolheram
e buscaram exercê-la tão plenamente quanto ele.
Albert Schweitzer,
nascido em 1875 e falecido em 1965, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1952. Seu
exemplo de dignidade, seu conhecimento filosófico e teológico e principalmente
sua prática de amor ao próximo e respeito à vida (que o fazia cuidar também dos
animais) iluminaram muitas gerações.
Todos os formandos dos
últimos dez anos sabem, certamente, quem foi Zilda Arns, e ouviram falar da
Pastoral da Criança que, com soluções simples, como o soro caseiro, conseguiu
diminuir a mortalidade infantil no Brasil e na América Latina. A Dra. Zilda
Arns (1934-2010) foi indicada também, em 2006, ao Prêmio Nobel da Paz. Mas sua
morte num terremoto no Haiti, país de extrema pobreza e condições geográficas
adversas, e onde ela difundia os ensinamentos da Pastoral, a tornam nosso
exemplo mais brilhante e significativo.
Há outros exemplos, como
os Médicos sem Fronteiras, o antigo Projeto Rondon (que percorreu o Brasil). E
há casos isolados de pessoas que abrem mão do conforto e benesses dos grandes
centros para ajudar todos os que precisam, neste imenso Brasil, no qual só a
desigualdade social é maior que seus contrastes físicos.
Para os que argumentam
com a falta de infra-estrutura para o exercício da medicina, mas também não a
cobram nem a solicitam, vou contar uma história que aconteceu comigo, na
adolescência.
Dos doze para os treze
anos, fui gradativamente perdendo não a capacidade de ver, mas a capacidade de
distinguir o que via. As imagens se tornaram cada vez menos nítidas, de modo
que, mesmo sentando na primeira fila na escola, eu não conseguia enxergar o que
estava escrito na lousa. Isto aconteceu num período de tempo muito curto, menos
de um mês, e logo fui encaminhada a um oftalmologista, que diagnosticou quatro
graus de miopia.
Cerca de um ano depois
fomos a Alagoas, terra de meu pai e, em visita aos muitos conhecidos da região
(Tingui, município de Água Branca), chegamos à casa de um casal cuja esposa
era, diziam todos, “cega”.
Não sei se alguém falou
da minha miopia, mas num dado momento, a “cega” chegou perto de mim e perguntou
se poderia colocar os meus óculos.
Deixei.
Então, para surpresa de
todos, ela começou a rir alto, de alegria. Ora da janela, ora da porta, ela
apontava, de um lado, a árvore, da qual tinha se esquecido; de outro, um
telhado lá ao longe, de uma casa que ela não sabia que havia sido construída...
Ela olhou a própria sala de sua casa com surpresa, descobriu pequenas coisas
que não via. Olhou seu próprio rosto no espelho, e passou a mão pelas faces,
pelos cabelos, descobrindo, descobrindo, descobrindo...
Mas lá não havia
médicos...
Quantos casos simples de
resolver teriam diminuído o sofrimento e o desconforto de tantas pessoas, com
mais boa vontade de parte dos governantes e dos próprios médicos? Este fato que
narrei aconteceu nos anos sessenta. E de lá para cá, não obstante a entrada, no
país, de inúmeros aparelhos capazes de diagnósticos precisos, não obstante o
número de faculdades de medicina ter aumentado muito, o problema da Saúde em
geral continua o mesmo, ou piorou.
O atendimento médico às
classes menos favorecidas nos grandes centros ou nos longínquos cantões do país
não difere muito. Portanto, se o esforço no sentido de melhorar esse
atendimento se dirigiu para estrangeiros, esgotadas as possibilidades de
contratação de médicos brasileiros, não aceitem o fato, se não quiserem – mas
não censurem ou se oponham aos médicos que vieram. Não esqueçam – sobretudo os
que cursaram Medicina em universidades públicas – que os seus anos de estudo
foram custeados com os impostos destes sofridos, tão sofridos brasileiros
pobres ou miseráveis, das periferias ou dos vilarejos.
Não argumentem, por
favor, que os médicos cubanos representam “trabalho escravo” porque repassam a
maior parte de seus salários ao governo de seu país. Quando armarem suas
árvores de Natal, com enfeites chineses cheios de brilho e distribuírem
presentes “xing-ling”, tão modernos e tão baratos, perguntem se não é o
trabalho infinitamente mal remunerado, aviltante, que faz o preço de tudo isso
ser tão irrisório. Perguntem o que abaixa o custo dos produtos a níveis quase
impossíveis.
E sob uma estrela de
plástico cheia de glitter, peçam “paz na terra aos homens de boa vontade”.
De boa vontade.
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