Com ensaios iniciados em 1921, o Poema Sinfônico CENTENÁRIO,
que inaugurou o Monumento do Ipiranga em
7 de setembro de 1922, tem um caráter heróico e apoteótico que se coaduna com o
espírito do evento para o qual foi composto: o Centenário da Independência do
Brasil. Escrito por Savino De Benedictis (1883-1971) para grande orquestra,
banda, banda de clarins, cornetas e tambores e coral a 4 vozes (cantando também
em uníssono), foi apresentado sob a
regência do maestro capitão Joaquim Antão Fernandes (1864-1949). Esta grande
obra foi executada como apoteose do evento, iniciado às 8h45, no local onde o
Príncipe D. Pedro proclamou a Independência.
Com a presença do Dr. Washington Luís Pereira de Souza,
Governador do Estado e demais
autoridades civis e militares, como o
Comandante da II a. Região Militar, Gal. Rondon, ouviu-se o Hino Nacional Brasileiro
(música de Francisco Manoel da Silva, letra de Osório Duque Estrada). A seguir o
Dr. Washington Luís cortou o fio que prendia a bandeira nacional e inaugurou o
Monumento do Ipiranga. O Deputado Dr. Roberto Moreira fez um discurso, seguindo-se
mais seis. Terminados os discursos, ouviu-se o Hino da Independência (música de
D. Pedro e letra de Evaristo da Veiga), e finalmente Centenário - Poema
Sinfônico.
Além de grande orquestra, constituída de 100 professores de
São Paulo, a execução teve ainda a atuação da Banda da Força Pública e da Banda
Giuseppe Verdi, de São Paulo; da Banda Carlos Gomes, de Araras; da Banda Carlos
Gomes, de Jaú; da Banda Saltense, de Salto de Itu, da Banda Liberdade, de São
Roque, de bandas de clarins, cornetas e tambores, ao todo mais de quinhentos
instrumentistas.
A orquestra que se apresentou não é nominalmente
identificada, mas, à época, muito dos grandes eventos da capital eram
acompanhados pela orquestra do Centro Musical de São Paulo, entidade de classe
fundada em 1913 pelo próprio Savino De Benedictis, autor da música Centenário.
Podemos imaginar que fosse essa a orquestra a atuar nessa comemoração, pois era
ela que fazia os concertos e a parte musical das óperas do Teatro Municipal e
que mais tarde veio a ser incorporada ao próprio Teatro, como Corpo Estável.
A parte vocal foi executada pelos corais do Colégio Cristovão
Colombo, do Instituto Da. Anna Rosa, da Sociedade Coral Benedetto Marcello e da
Sociedade Coral da Cia. Lírica Nacional, em conjunto com soldados da Força
Pública e 1.500 escoteiros, totalizando um coro de cerca de cinco mil vozes. Essas
informações são de um recorte de jornal da época, infelizmente não
identificado, em notícia do próprio dia 7 de setembro de 1922.
O jornal O Estado de
S. Paulo de 7 de setembro de 1972, ano do sesquicentenário da Independência,
acrescenta muitos detalhes a estas informações. Por exemplo, que quando a
execução do Poema Sinfônico Centenário terminou, a comitiva de autoridades
dirigiu-se ao Museu Paulista, onde o Governador inaugurou novas salas e as duas
estátuas dos bandeirantes Raposo Tavares e Fernão Dias Paes, feitas por Luís Brizzollara
por encomenda do diretor do Museu, o historiador Affonso d’Escragnolle Taunay.
POESIA E MÚSICA
A música do Poema Sinfônico Centenário se inspira em texto
de Francisco Roca Dordal. Tanto a partitura de orquestra quanto a de banda têm
como epígrafe, ao iniciar-se cada trecho musical, as primeiras palavras de cada
trecho escrito por Roca Dordal. Desse modo, o Andante sostenuto, que abre a
peça em 3/2, traz o texto “É a hora da prece e da poesia; da tarde a agonia...”
Este trecho, denominado Meditação de D. Pedro, é um tema simples, orquestrado
com muito equilíbrio, de modo a manter um espírito de meditação, melancolia e
até certa angústia. Em seus últimos compassos, ouvem-se os sinos tocando 4
horas da manhã, com fundo de clarinetas e violas (o autor indica que os sinos
devem estar na torre, à distância).
A seguir um trecho coral, a quatro vozes, cantando versos de
Henrique de Macedo (1880-1944), poeta de Jacareí, SP. O jornal O Estado de S. Paulo,
de 4 de maio de 1921, anuncia a edição do poema sinfônico, mas na verdade foi publicada
apenas a parte coral, o restante permanece em manuscrito até esta data.
A orquestração cresce com os versos, mas a intensidade vai
diminuindo e alargando até ralentar. Começa o 2º Movimento, denominado
Alvorada, Più mosso (mais movido), em 3/4, seguindo a epígrafe “Ei-la a
surgir... Tênue, fraca luz envolve a terra”. Este movimento apresenta mais
mudanças de dinâmica e de colorido que o anterior.
Novamente o sino da torre soa cinco horas. Aurora! A
orquestra cresce, chegando a “tutti”, e depois de gradativamente ir-se
reduzindo, segue o texto “Rompe o sol. Em gargalhar de luz, de calor e de alegria
desperta a vida!”. Escrita em 6/8, esta seção é mais alegre. Tem desenhos
rítmicos bem marcados, uma corneta que toca ao longe, e a orquestração em
cordas e madeiras é muito intensa, mas logo é reduzida; o movimento também se
reduz e novamente a orquestração se intensifica, a orquestra toca em “tutti”
por 18 compassos. Muda então para 2/4, que é um tempo de marcha, e começa o
trecho intitulado Cavalgada. “Caminham os corcéis sobre o macio tapiz”, em
Allegro vivacissimo. O som da cavalgada é feito pelos tímpanos, contrapondo-se
aos clarinetes, fagotes, violas, violoncelos e contrabaixos.
Entra o Hino Português, apresentado pelos trompetes em 7
compassos. A seguir os trombones apresentam o Hino da Independência, sempre
crescendo. Chegando ao fortíssimo, o tema do Hino é parafraseado e a sonoridade
fica bem menos intensa, para depois crescer, enquanto entram os instrumentos de
percussão e o coro canta em uníssono a primeira estrofe do Hino da
Independência, prolongando os versos finais.
O fechamento da obra, entretanto, está no próprio Hino do
Centenário: ”Quer ser livre a nação e diz Fico (...)” agora cantado em uníssono, e em 2/4. Quando a
última frase é cantada, violinos e violas fazem, também em uníssono, escalas ascendentes
rapidíssimas, até o acorde final, sustentado até terminar o toque de cornetas
que arremata a obra.
OUTRAS APRESENTAÇÕES
Este mesmo poema sinfônico (que melhor seria chamar de Poema
Coral-Sinfônico) contou com diversas apresentações em São Paulo: inaugurou em
1940, sob regência do maestro Armando Belardi, o Estádio do Pacaembu, hoje
chamado Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho. Na versão para banda e
coro, faz parte do repertório da Banda Sinfônica da Polícia Militar do Estado
de São Paulo e é frequentemente reapresentado. Foi executado também no dia 12
de dezembro de 1983, por ocasião do encerramento das comemorações do centenário
de nascimento de Savino De Benedictis, com a Orquestra Sinfônica do Estado de
São Paulo, gentilmente cedida por seu titular, maestro Eleazar de Carvalho,
para a competente e brilhante regência do maestro Silvio Baccarelli, ex-aluno
de Savino De Benedictis. O Coral Baccarelli executou a parte vocal desse belo
espetáculo de encerramento, apresentado no
Teatro Cultura Artística.
O jornal O Combate, de 7 de setembro de 1922, publicou
comentário acerca da obra, escrito por João Sepe, ex-aluno de Savino De
Benedictis, onde diz, com acerto, que a obra segue os preceitos da música
programática estabelecidos por Hector Berlioz (1803-1869), quando criou a
Sinfonia Fantástica. Note-se que este compositor francês, em 1840, organizou um
concerto em homenagem ao décimo aniversário da revolução de 1830 (na França),
utilizando um efetivo orquestral e coral grande como este do nosso Centenário,
dada a natureza do evento que homenageava.
Um outro jornal que
traz comentários muito interessantes acerca da obra é o Jornal do Commercio, de
Jahu, datado de 18 de novembro de 1922, que anuncia apresentação da obra
Centenário para as comemorações de 15 de novembro, em frente à Igreja Matriz da
cidade. A notícia posterior ao concerto informa que este foi realizado pela
Banda Carlos Gomes, sob regência do maestro Heitor Azzi. Na ocasião foram
aproveitados os degraus e a torre da igreja, para as salvas e os clarins. No
início do canto, os alunos de escolas locais gritaram “Independência ou Morte”
e 1800 alunos cantaram o Hino do Centenário, seguido do Hino dos Escoteiros,
composto pelo capitão maestro Joaquim Antão Fernandes.
A comemoração de 15 de novembro em São Paulo, no ano de
1922, contou com o 11º. concerto da
Sociedade de Concertos Sinfônicos, no Teatro Municipal, em programa regido pelo
maestro Torquato Amore frente à orquestra dessa Sociedade, iniciado pela
Sinfonia nr. 1 de Beethoven e encerrado com o Poema Sinfônico Centenário.
ASPECTOS LITERÁRIOS
Os textos literários, de diferentes autores, que se somam
para integralizar o conjunto desta obra, são: o primeiro, em prosa, de autoria
do Prof. Francisco Roca Dordal, que é o programa da peça, foi provavelmente
escrito especialmente para a ocasião. O Prof. Francisco Roca Dordal é
personagem sobre o qual não conseguimos informações. Sabemos apenas que o
Terceiro Grupo Escolar Modelo do Brás mudou de nome em 2.12.1938 para Grupo
Escolar Rocca Dordal; em 28.1.1976 foi
fundido com o Instituto de Educação Padre Anchieta, para constituir a Escola
Estadual de 1º. e 2º. Graus Padre Anchieta. O segundo texto, em versos cantados no Hino
que finaliza o poema sinfônico, autoria do escritor Henrique de Macedo, não
constam do livro de poemas que este autor publicou em 1924, Nova primavera, não
havendo informação sobre sua procedência.
Ambos são escritores de forte influência parnasiana ou
romântica. Parnasiana pelo aporte formal
e romântica pela escolha de temas nacionalistas, com citações de cultura
clássica.
Em jornal não identificado, de 3 de setembro de 1922, o
próprio compositor descreve sua obra:
“Meditação – O príncipe regente, mergulhado em íntimos
pensamentos. Rompe a aurora. Começa uma fuga, pianíssimo, intensificando-se,
com a entrada de clarins e cornetas, que anunciam o despontar da alvorada, num
crescendo. Pássaros gorgeiam, o Ypiranga marulha docemente. Avolumam-se os
ruídos e sonoridades do dia que se estende prateando os outeiros formosos de
Piratininga.
Cavalgada – Estrupidos de corcéis em disparada ressoam na
vastidão dos campos. Aproxima-se a escolta luzida e galharda do príncipe. No arruído
se distinguem as notas do Hino Português. Iniciam-se, porém, as ardentes
estrofes do Hino de D. Pedro que, pouco a pouco avultando-se, funde-se com o
Hino da Metrópole, assoberba-o, domina-o, apaga-o.
Apoteose – É o momento em que rompe o coro apoteótico da
Independência. Erguer-se-ão as vozes de 3000 soldados, 1500 escoteiros, mais de
1000 alunos de escolas e sociedades corais, como sejam os do Instituto D. Anna
Rosa, Christovam Colombo, Sociedade Coral Benedetto Marcello e coro da
Companhia Nacional de Óperas Líricas, dirigido pelo maestro Alessio, e outras.
Será um momento de intensa emoção e de deslumbrante entusiasmo popular”.
Mas há um outro texto, talvez inédito, de punho do maestro capitão
Joaquim Antão Fernandes, autoridade designada pelo Governo do Estado de São
Paulo para organizar essa solenidade. Escrito com simplicidade, mas com apuro, nele
este mestre, que foi o regente da obra em pauta, descreve o momento e a emoção
das comemorações dessa data: “Dia 7 de setembro de 1922. O Brasil com cem anos
de independência. O dia de maior glória em toda minha vida pública. Por ordem
do governo organizei o concerto nas margens históricas do Ypiranga, em frente
ao monumento. Elenco de grande orquestra. Sob a minha regência a Banda da Força
Pública, mais quatro bandas do interior, a banda de clarins (a cavalo), bandas
de cornetas e tambores, quatro mil escolares, mais ou menos, e quinhentos
soldados, executaram o Hino Nacional Brasileiro e o belíssimo poema sinfônico
“O Centenário”, escrito, a meu pedido, pelo maestro Savino De Benedictis, letra
de Henrique de Macedo, para comemorar o primeiro centenário. Do estrado da
regência olhei a multidão cobrindo as dependências do local. O silencio
imperava. Os músicos, os cantores, o povo, tinham presa a atenção na minha
batuta. Levantei-a, o Hino da Pátria fez-se ouvir nos seus primeiros compassos
e depois perto de cinco mil vozes juvenis inundaram de sons o Ypiranga. Eu, o
caipira de Batataes, que a pé me aventurara pelo mundo, era o autor daquele
feito, que me honrou como musico e como brasileiro”.
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