segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Olé, mulé rendera...



Em fins da década de 80, uma empresária do ramo da confecção, enfrentando as enormes dificuldades que a inflação produzia no país, tentou mudar sua indústria para o Nordeste. Não teve sucesso. Ela oferecia um salário mínimo para uma jornada de oito horas e, na cidade para onde transferiu sua oficina de confecção, ninguém aceitou.

Há quase dez anos atrás, conversando com um senhor aposentado que consertava nossos aparelhos de som – rádios, toca-fitas, toca-CDs – ele comentou conosco que sua mãe havia visitado o Nordeste e, falando particularmente de uma cidade, concluiu que as mulheres de lá eram “muito preguiçosas”.
– Essas mulheres se contentam em ganhar muito pouco. Vendem a renda que fazem a pessoas do Sul que as compram e depois as revendem, com muito lucro. As cidades da região onde as rendeiras moram têm, de sobra, árvores de uma fruta muito procurada. Os homens dessa e outras cidades levam as frutas para um centro maior, ali perto, e as vendem na feira, lucrando bastante... Ora, essas mulheres poderiam também ir vender as frutas. Ganhariam muito mais do que fazendo renda e esperando alguém vir para comprar...

Na hora em que ouvi, não disse nada. Percebi que ele, montado em suas verdades a respeito dos pobres, não aceitaria uma réplica. Ele se baseava nessas afirmações para nos mostrar a inteligência e capacidade de observação de sua mãe. Mas enquanto o ouvia, fui decodificando seu discurso e imediatamente relacionando com a história da empresária, de vinte anos antes.
Conheço o Nordeste, de perto e por de dentro: meu pai era alagoano. Além disso, venho estudando a questão dos trabalhos manuais há muito tempo. As mulheres nordestinas têm grande tradição e grande habilidade manual, mas este trabalho – de renda, crochê, tear ou costura – é exercido em sua própria casa. A  falta de estrutura dos distritos e das cidades, e sua própria falta de estrutura familiar, as obrigam a essa condição. 

Produzir trabalhos manuais em casa é possível, ao mesmo tempo em que a panela ferve no fogão, a roupa seca no varal, as crianças estão em volta da mãe. Seus animais de criação estão próximos: ela ouve quando a galinha bota, deixa o trabalho por um momento e vai recolher o ovo. E ela pode receber o marido, se ele chega da roça ou da feira, onde vai vender o excedente de sua lavoura. Ou até mesmo do bar... 

Interrompe o trabalho quando se sente cansada e vai fazer um café, ou recolhe a roupa que está coarando no quintal... E, com isso, mesmo ficando, no decorrer de sua vida, com as costas curvas e os olhos afetados, no seu dia-a-dia ela pode se levantar e fazer alguma tarefa doméstica na qual, se cansando de forma diferente, descansa da imobilidade do trabalho manual.

No caso da empresária, foram muitas as empresas que pensaram da mesma forma. E tiveram de desistir. Seria um problema individual, de resultados coletivos maléficos para a comunidade, ficar o dia inteiro em uma oficina de costura, deixando sua casa e seus filhos para trás. No fim do mês o dinheiro viria com descontos, e ela teria de comprar alimentos, pagar alguém para fazer o trabalho de sua casa e cuidar de seus filhos. Tudo isso ela consegue resolver, em grande parte e com autonomia, enquanto faz renda. Se os necessários técnicos que acompanham indústrias se mudassem para essas cidades, o custo da habitação haveria de subir. E o custo dos alimentos, também. 
Há muitas pequenas grandes coisas que uma dona-de-casa pobre e sem recursos faz, sobrevivendo em cidades pobres e sem recursos...

No caso da narrativa da mãe do nosso técnico, se as mulheres daquelas cidadezinhas fizessem o que ela sugeria, teriam de deixar os filhos com alguém, pagar sua própria passagem de ida e volta e custear a alimentação. Além disso a afluência, na cidade maior, de mais concorrentes para vender as frutas, necessariamente baixaria os preços a um valor que não haveria de compensar – nem a elas, nem aos homens que tradicionalmente sobrevivem desse negócio.

Recentemente, circulou na Internet um texto sobre mulheres nordestinas que recebem Bolsa-Família e a quem uma entidade proporcionou cursos de capacitação. Todavia, segundo o texto, não conseguiram empregar essas pessoas: elas não aceitaram. A interpretação mais superficial é a da preguiça e da pouca vontade de trabalhar, que seriam estimuladas pelo programa do governo. Mas será que alguém parou para pensar nessa ciranda de sobrevivência, e nos problemas que a súbita interrupção dela pode gerar? Creio que essas pessoas podem – como na Idade Média – trabalhar em sua própria casa, como, aliás, muitas indústrias fazem no Sudeste. Mas a entidade que proporcionou os cursos não aceitou essa alternativa.

Há um fator que é mais novo, para mim, do que esta ciranda de trabalho doméstico intercalada com o fazer rendas. De algum tempo para cá tem sido denunciada, com ênfase, a prática da pedofilia. Esse mal atinge muitos estados brasileiros e atrai verdadeiras caravanas estrangeiras que procuram o Nordeste para esse fim. Na TV, atualmente, a Fundação Abrinq denuncia claramente a condição de escrava sexual de uma menina de onze anos.

Essa insistência em trabalhar em casa pode estar relacionada, entre as mulheres e mães, à sua preocupação e necessidade de permanecer por perto, para exercer a proteção necessária sobre seus filhos.

Pensem nisso antes de julgar.

Um comentário:

Pedrita disse...

concordo. e essa ideia de que essas mulheres poderiam ganhar mais, ou até enriquecer, como se isso fosse algo de real valor. viver em comunidade, administrar todos os afazeres rurais e domésticos. criar e educar os filhos. é um valor. muitos acham que um valor é enriquecer, ganhar mais, produzir em escala e tem dificuldade de entender que viver mais tranquilamente, tb é um valor. beijos, pedrita