terça-feira, 27 de novembro de 2012

O PIANO, UM PIANO... TODOS OS PIANOS


É de Aníbal Machado (1894-1964) o conto O Piano, em que narra a saga de uma família de Ipanema, nos tempos da Segunda  Guerra Mundial, lutando para se desfazer de um bem recebido por herança.

“Custear o enxoval de Sara com a venda; transformar a saleta em quarto para o futuro casal – teriam que dispor dele de qualquer maneira”, é o projeto da família de João de Oliveira, que recebe inúmeros pretendentes á venda, anunciada previamente em jornais. Desde mães e filhas, negociantes, uma estudante com sua pasta de músicas, o professor, todos avaliam mal o piano, muito antigo, cujo toque provoca um acesso de latidos em Doli, a cachorrinha da casa.

O personagem principal, João, oscila entre a necessidade prática do momento e o sentimento em relação ao objeto: “Já não fazia questão do preço. Queria apenas que o seu piano fosse tratado com certa atenção.(...)O único móvel que falava da presença dos antepassados. Meio eterno. Ele e o oratório”. Nem quando o oferece a um parente, para que ele fique em família, tem sucesso. A mulher, Rosália, mais prática, mesmo com tristeza, se contrapõe à solução definitiva que ele encontra, diante da rejeição geral ao piano, a de atirá-lo ao mar. Mas até o carregador que ele contrata se recusa a atirá-lo, pois lhe parecia “um crime”.

É com os moleques da praia do Pinto e da Latolândia que ele consegue uma solução, ainda que tenha vindo em partes, como aos poucos se lhe arrancarem os metais, depois o tampo, e finalmente, ao atravessar a avenida da praia para chegar ao mar, motociclistas da polícia impedem o cortejo, pedindo-lhe documentos, depois sendo impedido de continuar por ter passado das dezoito horas.

À noite, quando cai uma tempestade, eles acordam e pensam no piano abandonado na praia. Depois, em um sono agitado, João de Oliveira, sonha com seu piano tocando tudo o que se havia tocado nele... “Uma porção de mãos, Rosália... Mãos diferentes de diversas mulheres. As de minha avó, as de minha mãe; as tuas; as de minhas tias, as de Sara. (...) Nunca ouvi músicas tão bonitas. Uma coisa sublime, Rosália. (...) De repente, os dedos se retiraram; ouviu-se a Marcha Fúnebre; o piano se fechou a si  mesmo ...tomou a enxurrada... deslizou para o oceano...”

No dia seguinte, se consuma o lançamento do piano ao mar. Diante da família já conformada, João se mantém ainda divagando sobre o fato, conjeturando: "Deve estar longe a estas horas. Sempre debaixo das águas... Passando por coisas estranhas. Destroços de navios. Submarinos. Peixe. Um móvel que nunca saiu desta sala...”

Depois é intimado a comparecer ao distrito policial, por suspeitarem que dentro do piano haveria uma estação de rádio clandestina, e mais tarde ainda a Capitania do Porto o procura para pedir satisfação do que atirou ao mar. Mas, depois de todos os transtornos, as duas ironias  que finalizam o conto: o noivo de Sara,  que lamenta não ter mais um piano, pois vive atormentado pelo ruído da artilharia, na qual trabalha.  E depois um comprador, que já havia visitado a casa, volta para lhe fazer uma proposta de compra...
SEREIA TOCANDO  PIANO...

O personagem João de Oliveira, apesar de toda a imensa poesia do contista Aníbal Machado, previu quase tudo o que o piano poderia encontrar no fundo do mar. Menos o que o olhar do poeta Cassiano Ricardo (1895-1974), contemporâneo do escritor, viu como possibilidade em seu belo conto: que o piano fosse encontrado por uma sereia, que o toca à noite.

Seu poema SEREIA TOCANDO PIANO, que tem como epígrafe “Eu vi as ondas engolirem-no”. (Aníbal Machado), apanha a sugestão do encontro do móvel -  ao qual ambos, contista e poeta, dão vida e sentimentos humanos -  com uma sereia. O poema, longo, versejado em décimas, com estrofes de nove versos, tem como refrão  “A sereia está tocando piano / tocando piano no fundo do mar”. A presença do refrão, que tem pequenas variantes, mas em essência afirma sempre   o toque da sereia, o transforma em canção – sem a música. Como o piano...

Cassiano Ricardo se demonstra condoído pela sorte do piano, tal e qual João de Oliveira, colocando em  um vocabulário romântico a expressão de seu  eu-lírico. Por muito longo, o poema não será transcrito,  apenas a última de suas oito estrofes:

               E – coisa que ninguém sabe explicar –
               Na sala onde os convivas se reúnem,
               Há a falta de alguém,  um lugar mudo,
               Onde o piano foi piano, o seu lugar.
               E ao ouvido da noiva um rumor surdo,
               Por mais que o evento lhe pareça absurdo,
               A todo instante chega, singular.
               É o piano que a sereia está tocando
   tocando  tocando no fundo do mar!

(Este pequeno ensaio é dedicado a Sergio de Nucci, em homenagem ao respeito que demonstra pelos bens materiais e imateriais de seus antepassados)