É de Aníbal Machado (1894-1964) o conto O Piano, em que
narra a saga de uma família de Ipanema, nos tempos da Segunda Guerra Mundial, lutando para se desfazer de
um bem recebido por herança.
“Custear o enxoval de Sara com a venda; transformar a saleta em quarto para o futuro casal – teriam que dispor dele de qualquer maneira”, é o projeto da família de João de Oliveira, que recebe inúmeros pretendentes á venda, anunciada previamente em jornais. Desde mães e filhas, negociantes, uma estudante com sua pasta de músicas, o professor, todos avaliam mal o piano, muito antigo, cujo toque provoca um acesso de latidos em Doli, a cachorrinha da casa.
O personagem principal, João, oscila entre a necessidade
prática do momento e o sentimento em relação ao objeto: “Já não fazia questão
do preço. Queria apenas que o seu piano fosse tratado com certa atenção.(...)O
único móvel que falava da presença dos antepassados. Meio eterno. Ele e o
oratório”. Nem quando o oferece a um parente, para que ele fique em família,
tem sucesso. A mulher, Rosália, mais prática, mesmo com tristeza, se contrapõe
à solução definitiva que ele encontra, diante da rejeição geral ao piano, a de
atirá-lo ao mar. Mas até o carregador que ele contrata se recusa a atirá-lo,
pois lhe parecia “um crime”.
É com os moleques da praia do Pinto e da Latolândia que ele consegue uma solução, ainda que tenha vindo em partes, como aos poucos se lhe arrancarem os metais, depois o tampo, e finalmente, ao atravessar a avenida da praia para chegar ao mar, motociclistas da polícia impedem o cortejo, pedindo-lhe documentos, depois sendo impedido de continuar por ter passado das dezoito horas.
À noite, quando cai uma tempestade, eles acordam e pensam no
piano abandonado na praia. Depois, em um sono agitado, João de Oliveira, sonha
com seu piano tocando tudo o que se havia tocado nele... “Uma porção de mãos,
Rosália... Mãos diferentes de diversas mulheres. As de minha avó, as de minha
mãe; as tuas; as de minhas tias, as de Sara. (...) Nunca ouvi músicas tão
bonitas. Uma coisa sublime, Rosália. (...) De repente, os dedos se retiraram;
ouviu-se a Marcha Fúnebre; o piano se fechou a si mesmo ...tomou a enxurrada... deslizou para o
oceano...”
No dia seguinte, se consuma o lançamento do piano ao mar.
Diante da família já conformada, João se mantém ainda divagando sobre o fato,
conjeturando: "Deve estar longe a estas horas. Sempre debaixo das águas...
Passando por coisas estranhas. Destroços de navios. Submarinos. Peixe. Um móvel
que nunca saiu desta sala...”
Depois é intimado a comparecer ao distrito policial, por
suspeitarem que dentro do piano haveria uma estação de rádio clandestina, e
mais tarde ainda a Capitania do Porto o procura para pedir satisfação do que
atirou ao mar. Mas, depois de todos os transtornos, as duas ironias que finalizam o conto: o noivo de Sara, que lamenta não ter mais um piano, pois vive
atormentado pelo ruído da artilharia, na qual trabalha. E depois um comprador, que já havia visitado
a casa, volta para lhe fazer uma proposta de compra...
SEREIA TOCANDO PIANO...
O personagem João de Oliveira, apesar de toda a imensa
poesia do contista Aníbal Machado, previu quase tudo o que o piano poderia
encontrar no fundo do mar. Menos o que o olhar do poeta Cassiano Ricardo
(1895-1974), contemporâneo do escritor, viu como possibilidade em seu belo
conto: que o piano fosse encontrado por uma sereia, que o toca à noite.
Seu poema SEREIA TOCANDO PIANO, que tem como epígrafe “Eu vi
as ondas engolirem-no”. (Aníbal Machado), apanha a sugestão do encontro do
móvel - ao qual ambos, contista e poeta,
dão vida e sentimentos humanos - com uma
sereia. O poema, longo, versejado em décimas, com estrofes de nove versos, tem
como refrão “A sereia está tocando piano
/ tocando piano no fundo do mar”. A presença do refrão, que tem pequenas
variantes, mas em essência afirma sempre
o toque da sereia, o transforma
em canção – sem a música. Como o piano...
Cassiano Ricardo se demonstra condoído pela sorte do piano,
tal e qual João de Oliveira, colocando em
um vocabulário romântico a expressão de seu eu-lírico. Por muito longo, o poema não será
transcrito, apenas a última de suas oito
estrofes:
E –
coisa que ninguém sabe explicar –
Na sala
onde os convivas se reúnem,
Há a
falta de alguém, um lugar mudo,
Onde o
piano foi piano, o seu lugar.
E ao
ouvido da noiva um rumor surdo,
Por mais
que o evento lhe pareça absurdo,
A todo
instante chega, singular.
É o
piano que a sereia está tocando
tocando tocando no fundo do mar!
(Este pequeno ensaio é dedicado a
Sergio de Nucci, em homenagem ao respeito que demonstra pelos bens materiais e
imateriais de seus antepassados)
Um comentário:
(...) homenagem ao respeito que demonstra pelos bens materiais e imateriais de seus antepassados (...). Ah... o piano... as mãos... a harmonia no conjunto das notas.... tudo o que inspirou, inspira... todos os que estão ali, no teclado de um piano... uma homenagem, homenagem que aplaudo... piano que toca... piano ao qual me apego... piano que me toca... nele, tudo o que está guardado comigo... mãe, irmã, vizinhança... tardes musicais... livros espalhados pelo chão...
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