sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CENTENÁRIO DE AMADEU S. BLOIS

Se estivesse vivo, “Seu” Amadeu, nome muito conhecido entre os músicos e estudantes de música até os anos 90, teria completado cem anos neste dia 12 de Setembro. Para não esquecer quem ajudou e orientou profissionais e alunos durante tantos anos, publicamos aqui as palavras com que o jornal NOTAS RICORDI falou dele com tanto carinho, um ano depois de seu falecimento.

“Nascido em 12 de setembro de 1910, no bairro do Brás, Amadeu Salvador Blois começou a trabalhar com músicas na Casa Sotero, na Rua Direita, quando tinha cerca de 12 anos.Aprendeu o essencial sobre partituras musicais com um funcionário da casa, Henrique Nicolino, já falecido. Estudou violino, instrumento de cuja literatura musical tinha um vasto conhecimento. Em 1942 foi procurado pelos Irmãos Vitale, para exercer o cargo de gerente da Casa Bevilacqua. Exerceu esse cargo até 1950, e a partir de então trabalhou na Casa Vitale, Rua Quintino Bocaiúva, 234, até que a casa encerrou suas atividades, em 1970.

Nessa ocasião, o Sr. Amadeu realizou seu sonho: abrir sua própria loja de músicas. Surgiu então, em sociedade com o Sr. Enrique Lebendiger, a CASA AMADEUS, situada à R. Conselheiro Crispiniano, 105. Nesta loja ele continuou trabalhando no que sempre gostou: a MÚSICA. Dono de memória fotográfica, conhecia tudo sobre seu metiê, e atendia a quem o solicitasse sempre com grande simpatia e boa vontade. Falecido em 15.06.1992, Amadeu Blois deixou uma lacuna que dificilmente será preenchida, pois, ao longo de cerca de 70 anos de atividades ininterruptas, acumulou conhecimento sobre a história viva da música em São Paulo, conhecimento este que tinha grande prazer em comunicar”.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

FREDERIC CHOPIN

Para homenagear o grande compositor Frederic Chopin em seus 200 anos de nascimento que transcorrem este ano, faremos paralelo entre ele e obras literárias que o representam, ou à sua música.

São de nossa especial predileção dois grandes poetas da Língua Portuguesa, o brasileiro Alceu Wamosy (1895-1923) e a portuguesa Florbela Espanca (1896-1930).

CHOPIN

Não se acende hoje a luz...Todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrela miudinhas, dando no ar
As voltas de um cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas...
Lusco-fusco... um morcego a palpitar
Passa... torna a passar... torna a passar...
As coisas têm o ar de adormecidas...

Mansinho... Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!


E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim na escuridão da sala...



Chopin é um romântico de primeira hora, e Florbela se coloca no romantismo tardio.Entretanto, guardadas as devidas e necessárias proporções que há necessariamente entre um músico e um poeta, há diversos pontos de contato entre as obras de ambos. Por exemplo, no plano pessoal, o desespero de um e de outro, fato relatado pelos contemporâneos de ambos.

Felix Mendelssohn, contemporâneo de Chopin e seu amigo pessoal, dizia que o polonês sofria “ da mania parisiense de parecer desesperado”. O crítico brasileiro Antonio Rangel Bandeira acrescentou: “Chopin era um desesperado que sofria da mania parisiense de parecer desesperado”.

De Florbela Espanca, Jorge de Sena e, através dele, José Régio, que prefacia a edição dos sonetos utilizados neste trabalho (ver Bibliografia), não usam a palavra “desespero”, mas cumulam os comentários críticos de qualificativos que muito se aproximam da ideia de desespero: depressão/exaltação (bipolaridade ?); hermafroditismo psicológico; voluptuosidade; insaciabilidade; inquietação, insatisfação irremediáveis; ansiedade. Em suma, estados de espírito distantes da serenidade. E que são indícios, sem dúvida, de sofrimento profundo, como o desespero.

O que Florbela articula em versos é a visão do Chopin das baladas, dos scherzos – amargas brincadeiras musicais -, da tristeza e da desesperança, e não o Chopin heróico das polonesas e alguns estudos. Em versos, ela traz a mesma visão “lusco-fusco” – claro e escuro, luz e sombra... Os seres noctívagos – falenas, morcego – aquelas “entontecidas”, este que “a palpitar/passa, torna a passar, torna a passar” e as coisas que têm o “ar de adormecidas”, evocam sobretudo os noturnos. O que Chopin exprime em música, através da alternância forte/piano, lento/rápido. Contrastes, em suma. Como no retrato que Eugene Delacroix fez do compositor e que é a imagem mais dele divulgada.

Já “as estrelas miudinhas dando no ar/ as voltas de um cordão de margaridas” remetem à circularidade, à reiteração de temas e desenhos musicais, tão presentes nas obras do romantismo, sobretudo de Chopin, cujo exemplo mais reconhecível é a famosa Valsa do Minuto (Valsa op. 64 nr 1), ou o menos conhecido Improviso op. 29 em lá bemol maior.

Nos dois tercetos, Florbela remete diretamente ao intérprete, que “mansinho, roça os dedos plo teclado”, e que é “alma, sacrário de almas”, além de ser o “meu amado”. O mais interessante é ser o intérprete quem traz, através de sua interpretação, a “divina, triste, grande sombra loira” que vem para a poetisa, isto é, a ouvinte do pianista, “na escuridão da sala”. Dessa linda e delicada maneira ela coloca o intérprete como um repositório sagrado de outras almas. E, em verdade, é a conjugação das almas de criador e intérprete que permite manter viva, hoje, a música de ontem, e amanhã manterá viva a música de hoje...

Mas o fato mais raro é uma outra forma de expressão, como a poesia, interpretar tão bem a realidade abstrata da música. E esta é, sobretudo, uma prova de grandeza: o grande músico Frederic Chopin é visto por uma grande poetisa nos aspectos em que ambos, cada qual em sua arte, se aproximam: o romantismo exacerbado, os contrastes, e a profunda e angustiante tristeza que os consumiu e os levou deste mundo relativamente jovens: ele, com 39 anos, ela com 36.

CHOPIN E ALCEU WAMOSY

Tua pálida mão, cheia de alma,
Sonha sobre a brancura do teclado,
Como um lírio de sons que a lua ensalma
De um mistério suavíssimo e sagrado.

Uma virgem de luto, olhos em calma,
Postas as mãos de luz reza ao teu lado,
E o seu gesto alvoral como uma palma,
Unge-te o vulto, místico, encantado...

Os acordes, tombando mansamente,
Tecem telas de bruma e agonia
Dentro do coração de quem os sente.

E, sob a tua mão, triste, soturno,
O piano vai gemendo, ao fim do dia,
Toda a humana amargura de um Noturno.


Também ele evoca o teclado, em sua brancura de lírio, e evoca o sagrado, a lua, o suavíssimo mistério. A figura da virgem de luto é original, em sua aceitação da morte (olhos em calma), com o contraste do luto e as mãos de luz (escuro/claro). O gesto dela, como uma palma (flor de velório), unge - outra vez o religioso, o sagrado – o vulto “místico, encantado”, isto é, alguém fora do mundo real.

O elemento musical propriamente dito, os acordes, “tombam” mansamente, idéia de queda, de algo que passa – o que realmente é a música, que passa no tempo – e, nessa passagem, “tecem” coisas tão leves como as “teias de bruma e agonia”. O ouvinte é expresso em seu âmago – o coração – e o verbo é “sentir”, de duplo significado, aqui, pois sentir é ouvir, em italiano, e ter sensação, em português.

Muito sutilmente, fecha-se a circularidade do poema quando, no último terceto, retoma a “mão”, que abre o soneto. Admissão tácita da qualidade essencialmente pianística da obra do músico que o poeta celebra, e que referenda a seguir, pois “o piano vai gemendo”, e se congraça com o poema de Florbela ao citar “ao fim do dia”, tal como ela evoca o lusco-fusco.

E seu final cita a forma musical que é implícita em ambos os poemas: o Noturno.

Interessante que se veja, nos dois poetas, o contraste luz/sombra, dia/noite, claro/escuro, pois em última análise este é consenso para vida (luz)/morte (escuridão).

Mas enquanto Florbela se situa ao lado do desespero, Wamosy se inclina para a tristeza. E é essa a dedicatória que faz de toda a segunda parte de seu livro, para alguém que não conheceu, que viveu em outro país, em outro continente, em outro mundo, enfim... mas com o qual se identifica na tristeza e talvez na música que ele não faz, a não ser em versos.

Dizem os biógrafos de Alceu Wamosy, Mansueto Bernardi e Till Rodrigues, que ele se emocionava tanto com os Noturnos de Chopin que chorava ao ouvi-los. Não é, pois, estranho que o poeta finalize seu poema evocando esta forma musical, da qual o pianista polonês é mestre e paradigma. A presença da noite é constante em sua obra poética, e no mesmo livro em que aparece o soneto Chopin, é publicado também um poema longo denominado Noturno. Além disso, em sua obra Alceu faz inúmeras citações de outros poetas, músicos e formas musicais.

Há um ponto em que Chopin e Wamosy se mostram irmanados: na duplicidade do caráter de suas obras. Ambos são muito mais conhecidos e louvados por lado lírico, mas apresentam um reverso heróico, politizado.

Um dos grandes sofrimentos de Chopin era ver sua pátria, a Polônia, sempre espoliada. Chamar a atenção sobre ela através de suas polonesas é uma nobre forma de erguer uma bandeira, a mais bela batalha – a do espírito.

A atividade política de Wamosy não se dá através da forma artística da poesia, mas de sua combativa ação jornalística. Acreditava tanto em seus ideais políticos que foi para a frente de batalha, como um soldado.No Rio Grande do Sul, um estado sempre ativo e politizado, durante a primeira República, ele se postou em defesa do Presidente de Província A. A. Borges de Medeiros, cujo governo estava sendo questionado por revolucionários, os Libertadores, chefiados por J. F. de Assis Brasil. E Alceu Wamosy foi ferido em combate, em 1923, na batalha de Poncho Verde, pelos adversários do governador, vindo a falecer no hospital de Santana do Livramento. Tinha apenas 28 anos e deixou uma pequena, mas significativa, obra poética de cunho simbolista, que hoje consta nas principais antologias da Língua Portuguesa.

CHOPIN E NIETSZCHE, NA VISÃO DE GUY DE POURTALÉS

O biógrafo mais conhecido de Chopin, Guy de Pourtalés, escreve uma linda página sobre o Noturno em dó menor op. 48 e transcreve um trecho do filósofo alemão F. Nietszche, comparando ambos, compositor e escritor, através de suas obras. Dessa forma: “Quando ouço o Noturno em dó menor (op. 48) onde, através de tanto sofrimento contido, esplende, contudo, misturado com a desgraça, este ideal, que não se constrói senão sobre as alegrias criadoras do espírito, penso numa página escrita por Nietszche (...). É este belo Canto da Noite, onde passam as visões negras e azuis de Chopin, seu olhar de flor, seus olhos de menina, e seu coração tão “extremamente, incrivelmente velho”. Alguns fragmentos destas estrofes me parecem fornecer ao Noturno de que falo - e à solidão final em que agora o Poeta vai entrar – um comentário digno deles.

O canto da noite
É noite: eis que se ergue mais alta a voz das fonte marulhantes.
E minha alma é também uma fonte marulhante.

É noite: eis que se elevam todas as canções de todos os amantes.
E minha alma é também uma canção de amante.

Há em mim algo de inquieto e intranquilizável que quer elevar a voz.
Há em mim um desejo de amor que fala, ele próprio, a linguagem do amor.

Sou luz: ah! se eu fosse noite! Minha solidão, porém, está em ser envolvido de luz.