quinta-feira, 25 de novembro de 2010

FRANCISCA JÚLIA: POEMAS PARA NÃO ESQUECER

ESTELA

Como dorme feliz, anjo adorado,
nesse teu berço, assim... tu, cujos olhos
nunca viram misérias nem abrolhos
mas vêem somente o maternal cuidado.

O anjo da guarda está velando ao lado
do teu berço, a sorrir... Os teus antolhos
são, por enquanto, os ondulantes folhos
do teu bercinho de ébano lavrado.

Dorme, que enquanto o querubim te vela,
ele te envolve nessa etérea veste
que usam no céu os querubins, Estela;

dorme; o teu sonho cheio de fulgores,
decerto eleva-te a um país celeste
todo cheio de pássaros e flores.

RÚSTICA

Da casinha em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora
Além, o seu quintal; este, o seu aposento.


Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora,
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...

E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência bóia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,

Pegando da costura à luz da clarabóia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de jóia.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenha sido quase esquecida depois de sua morte e do Modernismo, Francisca Júlia teve em vida uma plenitude que poucos tiveram, pois seu trabalho como poetisa foi muito reconhecido por seus contemporâneos, e sua vida particular indica uma felicidade rara que também poucos tiveram.

Mas é preciso atualizar alguns conceitos que, por nunca terem sido revisados, passaram para a história sem questionamento. O primeiro é que seria ela uma poetisa que levou às últimas conseqüências as normas da escola parnasiana, quanto à perfeição formal e quanto a um distanciamento que permite apenas a visão exterior do tema enfocado. Quanto à perfeição formal, pelo menos em seus poemas mais conhecidos, não há reparo a fazer; quanto à visão apenas exteriorizada, não deixa de ser verdade, mas podemos acrescentar que em seus poemas há uma vivacidade que faz com que o quadro que ela pinta tenha movimento, cor, vida, ternura. Estela e Rústica o comprovam, logo à primeira leitura.

Um outro conceito que merece atualização é em relação ao seu casamento. Na época em que viveu, a escolha que ela fez de seu marido não era bem vista, sobretudo no meio literário. Foi cruel o que disseram dela e de Edmundo, como se, por não ser ele também um intelectual, a diminuísse. A arrogância de seu meio tinha uma forte dose de machismo, pois expressava o pensamento geral de que o homem é quem deveria ter uma posição intelectual “superior”( e aqui coloco a palavra entre aspas para destacar o preconceito em relação às mulheres e àqueles que não eram bacharéis).
Mas a visão renovada dos fatos, devido à reviravolta que se deu em relação às mulheres, nestes últimos quarenta anos, pode nos fazer rever esta bela figura que deve ter sido Edmundo Filadelpho Münster. Ele foi realmente um homem superior em espírito, um homem capaz de amar pelo amor, elevando sua talentosa esposa sem sentir-se nunca rebaixado (ou eles não teriam sido tão felizes)...

Edmundo Münster pode ser encarado hoje em dia como o protótipo do homem moderno: aquele que é capaz de aplaudir a companheira, incentivá-la, e não ter o relacionamento interpessoal como um fator de concorrência. Não escreveu versos, mas viveu em estado de poesia – porque a grandeza de seu espírito permitiu e estimulou.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

UMA HISTÓRIA DE AMOR

Estes primeiros dias de novembro marcam os noventa anos da confirmação de uma das mais belas histórias de amor já vividas sob o céu da Paulicéia: a de Francisca Júlia e Edmundo Münster.

Noventa anos atrás a vida literária brasileira ainda vivia uma era parnasiana. A arte poética primava pela afirmação da forma, e uma constante apreciação da poesia, pelos próprios poetas e pelo público leitor, tornava extremados os princípios de escola. Dois anos depois, deflagrou-se o Movimento Modernista, em pleno ano do centenário da Independência – e a poesia declarou a independência do Belo pelo Belo, da Forma pela Forma.

Talvez a proximidade da morte de Francisca Júlia e os estertores do Parnasianismo tenha causado o esquecimento em que mergulharam todos os Apóstolos da mesma escola poética em que ela primou, como uma princesa. Princesa, não; rainha. Ela foi a seguidora mais fiel de todos os cânones parnasianos, e era, já na época, considerada a artista suprema da escola em que primavam nomes como Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, entre outros ilustres representantes.

Todavia, seu sucesso não era bem recebido por muitos leitores. Não por razões literárias, mas porque ela era mulher; e, no pensamento de seus contemporâneos, uma mulher não deve ter um nome e um brilho próprios. É na biografia de Olavo Bilac que encontramos uma referência direta a essa restrição, pois, ao tomar conhecimento de carta grosseira de um leitor, publicada em um jornal, que dizia coisas pesadas a Francisca Júlia, não pelo conteúdo de seus poemas, mas por ser ela uma mulher, ele sugeriu a sua noiva Amélia de Oliveira – irmã do poeta Alberto de Oliveira – que nunca publicasse seus poemas, para não se expor.

Entre seus pares, todavia, Francisca Júlia sofria restrições por seu casamento com Edmundo Philadelpho Münster, um casamento de amor, de muito amor. As restrições se deviam ao fato de ser ele um homem simples, sem pretensões artísticas ou literárias. O preconceito parece ter sido manifestado bem às escâncaras, pois Aureliano Leite comentou a recusa da poeta em concorrer (ou a assumir) a uma vaga na Academia Brasileira de Letras “para não deixar à porta seu marido” (citado na revista Leia, ano XL, 1990, nr 135, p. 26).

Mas a prova mais cabal deste amor deu-se no dia 1º. de novembro de 1920. No dia 31 de outubro, Edmundo faleceu. Ao despedir-se do corpo, Francisca Júlia teve um colapso e morreu, sendo sepultada no dia seguinte, em campa adquirida por seu irmão, o também poeta Júlio Cesar da Silva.

Como as informações sobre o fato encontram algumas divergências (em fonte que não recordo, afirma-se que ela morreu muito depois dele e que a história dessa “morte de amor” era lendária), fomos confirmar no Cemitério do Araçá, depois de ter visto em uma publicação que Victor Brecheret fez uma escultura para seu túmulo.

Não foi preciso explicar aos funcionários da Administração do Cemitério quem era Francisca Júlia. Todos sabiam, e um deles nos contou orgulhosamente que ela nasceu na mesma cidade que seu pai (Xiririca, hoje Eldorado Paulista). Imediatamente se prontificaram a nos mostrar o túmulo. Este possui uma placa informando que a escultura original de Brecheret, em mármore, foi transferida para a Pinacoteca, e que a substituição pela réplica em bronze foi autorizada pelos familiares da poetisa, mas não informa quem está ali sepultado.

Voltamos à Administração. Com enorme boa vontade, nos cederam, para consulta no local, o registro original, onde consta que Júlio César da Silva comprou o terreno no dia 1º. de novembro de 1920 para sepultar o cunhado, mas que dois dias depois sepultou também a própria irmã.

Se alguém duvida que se possa morrer de amor, visite o túmulo de Edmundo Philadelpho Münster e Francisca Júlia da Silva Münster. Fica logo à entrada, no portão principal, à direita, em uma rua sem calçamento.

O túmulo se distingue dos outros por uma estátua de bronze, de concepção moderna, em que a mulher representada tem um seio coberto e outro desnudo. Podemos interpretar este detalhe como uma referência à sua duplicidade, que até 1920 era muito rara: Francisca Júlia era artista, mas nunca deixou de ser também mulher.

E, apesar de ser Parnasiana, morreu de amor, como uma heroína romântica.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

CAPITÃES DO ASFALTO

Estava prevista para setembro último a estréia do filme Capitães da Areia, mas não está anunciada ainda. O filme se baseia no livro homônimo de Jorge Amado, livro este que foi adotado como leitura obrigatória, em décadas passadas, em algumas escolas de São Paulo.

Escrito em 1937, Capitães da Areia coincide com a criação do ensino escolar obrigatório e, naturalmente, narra a vida e as desventuras de meninos em situação de rua na cidade de Salvador, Bahia, sob a liderança de Pedro Bala, triste, mas verdadeiro, herói mirim.

Setenta e três anos correspondem a três gerações. Em todo este tempo, o analfabetismo não foi erradicado no Brasil, o trabalho infantil não foi erradicado no Brasil, a pedofilia só recentemente foi denunciada e todas as iniciativas em prol do estabelecimento de dignidade e respeito com a infância foram e continuam sendo solapadas sistematicamente. Às vezes, pelo poder público (lembram dos CIEPS do Rio de Janeiro e dos CEUS de São Paulo?); às vezes pela própria população, que tem pela criança abandonada uma atitude não só de desprezo, mas de franca hostilidade.

É o que acontece na São Paulo de hoje. Desestabilizada por uma suposta ação de valorização imobiliária da região chamada “cracolândia”, sua população de rua espalhou-se pelo Centro da cidade, criando uma legião de adultos e crianças maltrapilhos, vagando sem destino e, como era de se esperar, assustando e assaltando moradores e transeuntes.

A atuação e as atividades das crianças nessa situação lembram muito as de Pedro Bala e seus amigos, só que eles não estão nas belas praias de Salvador, mas no duro e cinzento asfalto de São Paulo.

É impossível, em tempos de eleição, deixar de perceber que famílias de políticos se perpetuam no poder. Os pais e “padrinhos” preparam desde cedo os filhos e “afilhados” para o exercício da política, ensinando-lhes todos os truques, todos os recursos do vazio retórico, todas as artimanhas de que se valem os donos do poder para cuidar de si mesmos e nem lembrar para que foram eleitos.
Também os pais dos meninos de rua, sejam capitães da areia ou capitães do asfalto, se perpetuam no analfabetismo, na miséria, na violência, e assim, quando ainda têm casa, colocam os filhos para fora dela.

São duas linhas paralelas: a pobreza endêmica e a politicagem hereditária. É um triste paralelo. Mas, sem dúvida, uma relação de causa e efeito muito visível, muito clara.

Cumpram os engravatados senhores metade de suas obrigações de legisladores ou executivos, e as duas linhas começarão a se aproximar, deixando de ser paralelas e juntando-se numa só, na qual se poderá apor a denominação de CIDADANIA.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

SER OU NÃO SER ... ANALFABETO

A manobra que vem sendo empreendida contra o candidato eleito Tiririca, que visa questionar suas condições de exercer o mandato de deputado federal, já que ele seria “analfabeto”, é antiética e profundamente imoral.

Lembremos o ator e escritor Plínio Marcos, já falecido, que, invectivado por Pagu, que o chamou de analfabeto, respondeu: “Como se isso fosse privilégio neste país!”

Sou apenas Bacharel em Língua Portuguesa, e não Licenciada. Por isso, nunca lecionei, e sempre usei o conhecimento adquirido na Universidade para melhorar minha atividade de jornalista e de escritora. Mas em certa ocasião tive uma experiência que vale à pena narrar: nos anos 70, fui redatora de uma publicação chamada Enciclopédia dos Municípios. O editor desta enciclopédia era o Sr. Álvaro Abujamra, e a sede da editora era na Rua Adolfo Gordo, quase esquina com a Alameda Eduardo Prado.

O material que editávamos era fornecido pelas próprias Prefeituras, que preenchiam um questionário e mandavam fotos de suas cidades, no interior de São Paulo. Certos questionários eram preenchidos à mão, pois não só na Prefeitura como na cidade inteira, não havia uma só máquina de escrever... A caligrafia de muitos deles não diferia daquela da prova a que foi submetido o candidato eleito Tiririca. Eu encontrava entraves diários na leitura dos questionários, para fazer o texto final, tão deficiente era a maneira como estavam preenchidos. E já são mais de trinta anos que isso aconteceu!

Bem mais recente que minha experiência nessa Enciclopédia, a eleição de Baratão para Vereador,em São Paulo, demonstrou que prova de escolaridade nunca foi exigência.

Tiririca incomodou porque obteve uma vitória esmagadora. Mas se era essencial apresentar um diploma, isto devia ter sido solicitado antes. A propósito, em que letra constitucional ou jurídica se baseia a alegação dos que o condenam, mas que, antes dele, nunca questionaram nenhum outro candidato? E tem mais: se Tiririca for “cassado”, a corja que ele carrega com seus votos deve ser igualmente defenestrada!

A obrigatoriedade da alfabetização no Brasil vem da 7ª. Constituição, de 1937. Nestes 73 anos, pouco se fez para que essa fosse uma alfabetização efetiva, “de verdade”... ou não teríamos um contingente de alfabetizados cuja precariedade é visível.

Um exemplo da intenção de manutenção dessa precariedade vem da “aprovação obrigatória”, criada pelo PSDB, na rede pública do Estado de São Paulo. Os alunos aprovados sem condições, através dessa cínica situação, verdadeira falsidade ideológica, é que deveriam ser submetidos a testes. Para avaliar a profundidade do dano que isto certamente causou a seu futuro.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

BOATEIROS, HERDEIROS DE IAGO

Não é uma profissão, mas é um exercício quase profissional em sua constância, coerência e oportunismo. Afinal, quem é um “boateiro”? Graças a Deus, não conheço nenhum pessoalmente, mas pela pegada se conhece o gigante – ou no caso, se conhece o pobre e mesquinho boateiro. Aquele, na falta de dados concretos, na falta de capacidade de análise dos fatos, no desejo doentio de fazer prevalecer sua opinião ou até, como às vezes parece, por pura inveja do sucesso alheio, observa bem a sombra de seu alvo e, incapaz de lutar com armas limpas, cria uma inverdade sobre ele.

O Boateiro, esse tipo desprezível, sabe como inventar uma história que soe plausível aos que, como ele, têm pouca capacidade de análise dos fatos. Sorrateiro, ele sabe a hora certa de soltar a mentirinha, de apenas sugerir, de dar a entender que tem acesso a fontes fidedignas e sobretudo ele sabe a quem soltar seu boato, como quem solta um balão em céu de brigadeiro.

Para quem não conhece ópera, cabe um esclarecimento: Iago é um personagem de Shakespeare, na peça Otelo, que se tornou mais conhecida depois de ser musicada e colocada em cena com música de G. Verdi. Ele cria a suspeita de traição da esposa de Otelo, Desdêmona, rodeando essa suspeita de pequenos detalhes que fazem-na parecer verdade, inclusive o lenço, que seria uma prova cabal mas que é apenas o elemento físico de sua intriga.

Na política brasileira, os Iagos têm caixa e caixas de lenços com o mesmo boato, que distribuem de tempos em tempos, sem originalidade e absolutamente sem fundamento: o de que este ou aquele político ou candidato é comunista.

Como nossa população é em geral ingênua e quase sempre despreparada, o lenço, digo, o boato, cai direitinho. A última vítima é Dilma Rousseff, que aliás tem trajetória idêntica à de Serra, em termos de ideologia juvenil. Até onde sabemos, ela ficou no Brasil, enquanto o candidato oponente fugiu para o Chile, onde Salvador Allende tentava seguir as pegadas de Fidel Castro em Cuba.

Tudo isso aconteceu há muito tempo, e mesmo assim as pessoas não somam dois com dois para perceber algumas coisas que caracterizam o Comunismo. Vamos recapitular: o primeiro regime comunista constituído apareceu na Rússia, em um momento que não se parece em nada com os dias de hoje; era o fim da 1ª. Guerra Mundial. O segundo apareceu na China, em 1947; isto é, no fim da 2ª. Guerra Mundial. Os outros dois são Cuba, o mais duradouro, agora se esvaindo como uma pedra de gelo, e finalmente o do Chile, para onde foi o candidato Serra.

Nos dois primeiros países citados, devido à guerra, havia um exército organizado. E é isso que caracteriza o surgimento de um estado assim – talvez não do ponto de vista sociológico, mas em uma análise de seus aspectos exteriores. O regime comunista, como o nazismo e o fascismo, se baseiam em um exército que, se não é forte de verdade, pelo menos assim se exibe (ver o detalhe da exterioridade). Em documentários sobre o fascismo, o nazismo e o comunismo, vemos sempre desfiles e ditadores uniformizados, que se parecem tanto que, se não fossem os símbolos facho, suástica e foice-e-martelo, não poderíamos distinguir quem são eles. Os chineses escapam da mesmice por suas feições orientais, mas seu aparato visível é muito igual ao dos outros.

BOATEIROS DE PLANTÃO, respondam seu pestanejar: vocês acham que a Dilma tem cara de quem vai comandar um exército? SEGUIDORES DE BOATEIROS: vocês acham que, em tempos de plena paz (pelo menos entre nós), de tanto samba, com previsão de Copa do Mundo em fins do mandato, ela vai chegar e declarar uma mudança de regime? IAGOS DE PLANTÃO: mudem o refrão, que este não está afinado.

Ou melhor: disfarcem e saiam de fininho. Vocês não estão agradando!

domingo, 3 de outubro de 2010

ISAÍAS SÁVIO E O VIOLÃO NO BRASIL

O violão chegou ao Brasil através dos portugueses, povo de plangentes guitarras. Por muitos e muitos anos, foi o único som musical a se misturar aos sons da floresta, ou ao som dos trabalhadores, ou ao som das lides do dia a dia, nas modestas casas brasileiras. Instrumento sobretudo popular, tão amado pelo povo, o violão foi, durante muito tempo, discriminado nos salões da aristocracia e da burguesia.

Em 1914, a Primeira Dama do país, Nair de Teffé, esposa do Marechal Hermes da Fonseca, resolveu chocar a sociedade carioca. Que fez ela? Escolheu justamente o violão, esse instrumento tão discriminado, para tocar a peça Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga. A imprensa foi veemente, quase demoliu o Catete! Afinal, não ficava bem a uma senhora de alta categoria social tocar violão, instrumento considerado de vadios e desocupados.

De 1914 para cá, muita água passou por baixo da ponte. O Brasil teve Canhoto, João Pernambuco, Garoto e muitos outros, que se consagraram como grandes intérpretes e grandes compositores de peças violonísticas imortais. Até mesmo Heitor Villa-Lobos, reconhecido internacionalmente, dedicou-se ao violão e criou lindas peças para este instrumento, inclusive os Choros.

CONSAGRANDO O VIOLÃO

Mas, se hoje, este belo e expressivo instrumento conta com a dignidade de uma oficialização, através dos cursos de Conservatórios e de Faculdades, muito disso se deve à figura simpática e competente de Isaías Sávio.

Nascido em Montevidéu no dia 1º. de outubro de 1900, Isaías Sávio revelou-se musicalmente dotado desde cedo, mas só escolheu o violão depois de passar um pouco pelo piano e de fazer estudos teóricos. Tendo encontrado sua verdadeira vocação, a ela se dedicou com afinco, e em breve colheu belos frutos. Em 1912, ainda garoto, compôs Caixinha de Música, até hoje uma das peças de maior sucesso entre os violonistas. Aos quinze anos, estreou como concertista em sua cidade natal. Mais tarde, foi para a Argentina, onde se aperfeiçoou com Miguel Llobet, famoso guitarrista espanhol. De Buenos Aires, onde viveu de 1924 a 1930, veio para o Brasil, terra que o acolheu em um momento muito propício, pois os princípios nacionalistas começavam a dar frutos; assim sendo, o instrumento de legítima preferência do povo brasileiro começava a ser aceito também pela sociedade. Isaías estreou em Porto Alegre em 1931, residiu uns tempos no Rio de Janeiro e de lá veio para São Paulo, onde viveu até falecer, em 1977.

A CONTRIBUIÇÃO DIDÁTICA

De sólida formação erudita, Isaías Sávio não só formou grandes concertistas como também artistas que se dedicaram à música popular. Mas sua grande contribuição para a aceitação plena e para o desenvolvimento do estudo do violão no Brasil foi dada no ano de 1947, quando apresentou ao Diretor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Dr. Carlos A. Gomes Cardim Filho, a proposta da criação da cadeira deste instrumento. Com grande simplicidade, o Mestre observava, entre outras coisas, que ”la guitarra se ha elevado al nivel de los demás instrumentos solistas. Porque hoy posué una literatura propia, digna del mayor interes y estúdio, como tambiém una historia evolutiva juntamente com los demás instrumentos de cuerda”.

A semente estava plantada. E, no ano de 1948, a imprensa paulista noticiava, com grande ênfase, que se realizara em São Paulo a formatura da primeira turma de violão, sendo a primeira graduanda a Sra. Julieta Correa Antunes.

A HERANÇA DE SÁVIO

Em 1963, Isaías Sávio naturalizou-se brasileiro. Em 1965, com grandes festas, comemorou seu Jubileu de Ouro. Participando do Programa comemorativo, nomes que hoje brilham e fazem brilhar o violão: Paulinho Nogueira, Antonio Carlos Guedes Barbosa, Henrique Pinto...Cada qual tem sua técnica, seu modo particular de tocar e ensinar o violão, sua maneira característica de se expressar musicalmente. Mas seu ponto de confluência é o respeito comum ao grande Mestre Isaías Sávio, de quem são herdeiros e continuadores.

(Publicado no jornal NOTAS RICORDI, Informativo de Música, ano I nr 3, Dez 93/Fev 94, P. 1)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CENTENÁRIO DE AMADEU S. BLOIS

Se estivesse vivo, “Seu” Amadeu, nome muito conhecido entre os músicos e estudantes de música até os anos 90, teria completado cem anos neste dia 12 de Setembro. Para não esquecer quem ajudou e orientou profissionais e alunos durante tantos anos, publicamos aqui as palavras com que o jornal NOTAS RICORDI falou dele com tanto carinho, um ano depois de seu falecimento.

“Nascido em 12 de setembro de 1910, no bairro do Brás, Amadeu Salvador Blois começou a trabalhar com músicas na Casa Sotero, na Rua Direita, quando tinha cerca de 12 anos.Aprendeu o essencial sobre partituras musicais com um funcionário da casa, Henrique Nicolino, já falecido. Estudou violino, instrumento de cuja literatura musical tinha um vasto conhecimento. Em 1942 foi procurado pelos Irmãos Vitale, para exercer o cargo de gerente da Casa Bevilacqua. Exerceu esse cargo até 1950, e a partir de então trabalhou na Casa Vitale, Rua Quintino Bocaiúva, 234, até que a casa encerrou suas atividades, em 1970.

Nessa ocasião, o Sr. Amadeu realizou seu sonho: abrir sua própria loja de músicas. Surgiu então, em sociedade com o Sr. Enrique Lebendiger, a CASA AMADEUS, situada à R. Conselheiro Crispiniano, 105. Nesta loja ele continuou trabalhando no que sempre gostou: a MÚSICA. Dono de memória fotográfica, conhecia tudo sobre seu metiê, e atendia a quem o solicitasse sempre com grande simpatia e boa vontade. Falecido em 15.06.1992, Amadeu Blois deixou uma lacuna que dificilmente será preenchida, pois, ao longo de cerca de 70 anos de atividades ininterruptas, acumulou conhecimento sobre a história viva da música em São Paulo, conhecimento este que tinha grande prazer em comunicar”.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

FREDERIC CHOPIN

Para homenagear o grande compositor Frederic Chopin em seus 200 anos de nascimento que transcorrem este ano, faremos paralelo entre ele e obras literárias que o representam, ou à sua música.

São de nossa especial predileção dois grandes poetas da Língua Portuguesa, o brasileiro Alceu Wamosy (1895-1923) e a portuguesa Florbela Espanca (1896-1930).

CHOPIN

Não se acende hoje a luz...Todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrela miudinhas, dando no ar
As voltas de um cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas...
Lusco-fusco... um morcego a palpitar
Passa... torna a passar... torna a passar...
As coisas têm o ar de adormecidas...

Mansinho... Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!


E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim na escuridão da sala...



Chopin é um romântico de primeira hora, e Florbela se coloca no romantismo tardio.Entretanto, guardadas as devidas e necessárias proporções que há necessariamente entre um músico e um poeta, há diversos pontos de contato entre as obras de ambos. Por exemplo, no plano pessoal, o desespero de um e de outro, fato relatado pelos contemporâneos de ambos.

Felix Mendelssohn, contemporâneo de Chopin e seu amigo pessoal, dizia que o polonês sofria “ da mania parisiense de parecer desesperado”. O crítico brasileiro Antonio Rangel Bandeira acrescentou: “Chopin era um desesperado que sofria da mania parisiense de parecer desesperado”.

De Florbela Espanca, Jorge de Sena e, através dele, José Régio, que prefacia a edição dos sonetos utilizados neste trabalho (ver Bibliografia), não usam a palavra “desespero”, mas cumulam os comentários críticos de qualificativos que muito se aproximam da ideia de desespero: depressão/exaltação (bipolaridade ?); hermafroditismo psicológico; voluptuosidade; insaciabilidade; inquietação, insatisfação irremediáveis; ansiedade. Em suma, estados de espírito distantes da serenidade. E que são indícios, sem dúvida, de sofrimento profundo, como o desespero.

O que Florbela articula em versos é a visão do Chopin das baladas, dos scherzos – amargas brincadeiras musicais -, da tristeza e da desesperança, e não o Chopin heróico das polonesas e alguns estudos. Em versos, ela traz a mesma visão “lusco-fusco” – claro e escuro, luz e sombra... Os seres noctívagos – falenas, morcego – aquelas “entontecidas”, este que “a palpitar/passa, torna a passar, torna a passar” e as coisas que têm o “ar de adormecidas”, evocam sobretudo os noturnos. O que Chopin exprime em música, através da alternância forte/piano, lento/rápido. Contrastes, em suma. Como no retrato que Eugene Delacroix fez do compositor e que é a imagem mais dele divulgada.

Já “as estrelas miudinhas dando no ar/ as voltas de um cordão de margaridas” remetem à circularidade, à reiteração de temas e desenhos musicais, tão presentes nas obras do romantismo, sobretudo de Chopin, cujo exemplo mais reconhecível é a famosa Valsa do Minuto (Valsa op. 64 nr 1), ou o menos conhecido Improviso op. 29 em lá bemol maior.

Nos dois tercetos, Florbela remete diretamente ao intérprete, que “mansinho, roça os dedos plo teclado”, e que é “alma, sacrário de almas”, além de ser o “meu amado”. O mais interessante é ser o intérprete quem traz, através de sua interpretação, a “divina, triste, grande sombra loira” que vem para a poetisa, isto é, a ouvinte do pianista, “na escuridão da sala”. Dessa linda e delicada maneira ela coloca o intérprete como um repositório sagrado de outras almas. E, em verdade, é a conjugação das almas de criador e intérprete que permite manter viva, hoje, a música de ontem, e amanhã manterá viva a música de hoje...

Mas o fato mais raro é uma outra forma de expressão, como a poesia, interpretar tão bem a realidade abstrata da música. E esta é, sobretudo, uma prova de grandeza: o grande músico Frederic Chopin é visto por uma grande poetisa nos aspectos em que ambos, cada qual em sua arte, se aproximam: o romantismo exacerbado, os contrastes, e a profunda e angustiante tristeza que os consumiu e os levou deste mundo relativamente jovens: ele, com 39 anos, ela com 36.

CHOPIN E ALCEU WAMOSY

Tua pálida mão, cheia de alma,
Sonha sobre a brancura do teclado,
Como um lírio de sons que a lua ensalma
De um mistério suavíssimo e sagrado.

Uma virgem de luto, olhos em calma,
Postas as mãos de luz reza ao teu lado,
E o seu gesto alvoral como uma palma,
Unge-te o vulto, místico, encantado...

Os acordes, tombando mansamente,
Tecem telas de bruma e agonia
Dentro do coração de quem os sente.

E, sob a tua mão, triste, soturno,
O piano vai gemendo, ao fim do dia,
Toda a humana amargura de um Noturno.


Também ele evoca o teclado, em sua brancura de lírio, e evoca o sagrado, a lua, o suavíssimo mistério. A figura da virgem de luto é original, em sua aceitação da morte (olhos em calma), com o contraste do luto e as mãos de luz (escuro/claro). O gesto dela, como uma palma (flor de velório), unge - outra vez o religioso, o sagrado – o vulto “místico, encantado”, isto é, alguém fora do mundo real.

O elemento musical propriamente dito, os acordes, “tombam” mansamente, idéia de queda, de algo que passa – o que realmente é a música, que passa no tempo – e, nessa passagem, “tecem” coisas tão leves como as “teias de bruma e agonia”. O ouvinte é expresso em seu âmago – o coração – e o verbo é “sentir”, de duplo significado, aqui, pois sentir é ouvir, em italiano, e ter sensação, em português.

Muito sutilmente, fecha-se a circularidade do poema quando, no último terceto, retoma a “mão”, que abre o soneto. Admissão tácita da qualidade essencialmente pianística da obra do músico que o poeta celebra, e que referenda a seguir, pois “o piano vai gemendo”, e se congraça com o poema de Florbela ao citar “ao fim do dia”, tal como ela evoca o lusco-fusco.

E seu final cita a forma musical que é implícita em ambos os poemas: o Noturno.

Interessante que se veja, nos dois poetas, o contraste luz/sombra, dia/noite, claro/escuro, pois em última análise este é consenso para vida (luz)/morte (escuridão).

Mas enquanto Florbela se situa ao lado do desespero, Wamosy se inclina para a tristeza. E é essa a dedicatória que faz de toda a segunda parte de seu livro, para alguém que não conheceu, que viveu em outro país, em outro continente, em outro mundo, enfim... mas com o qual se identifica na tristeza e talvez na música que ele não faz, a não ser em versos.

Dizem os biógrafos de Alceu Wamosy, Mansueto Bernardi e Till Rodrigues, que ele se emocionava tanto com os Noturnos de Chopin que chorava ao ouvi-los. Não é, pois, estranho que o poeta finalize seu poema evocando esta forma musical, da qual o pianista polonês é mestre e paradigma. A presença da noite é constante em sua obra poética, e no mesmo livro em que aparece o soneto Chopin, é publicado também um poema longo denominado Noturno. Além disso, em sua obra Alceu faz inúmeras citações de outros poetas, músicos e formas musicais.

Há um ponto em que Chopin e Wamosy se mostram irmanados: na duplicidade do caráter de suas obras. Ambos são muito mais conhecidos e louvados por lado lírico, mas apresentam um reverso heróico, politizado.

Um dos grandes sofrimentos de Chopin era ver sua pátria, a Polônia, sempre espoliada. Chamar a atenção sobre ela através de suas polonesas é uma nobre forma de erguer uma bandeira, a mais bela batalha – a do espírito.

A atividade política de Wamosy não se dá através da forma artística da poesia, mas de sua combativa ação jornalística. Acreditava tanto em seus ideais políticos que foi para a frente de batalha, como um soldado.No Rio Grande do Sul, um estado sempre ativo e politizado, durante a primeira República, ele se postou em defesa do Presidente de Província A. A. Borges de Medeiros, cujo governo estava sendo questionado por revolucionários, os Libertadores, chefiados por J. F. de Assis Brasil. E Alceu Wamosy foi ferido em combate, em 1923, na batalha de Poncho Verde, pelos adversários do governador, vindo a falecer no hospital de Santana do Livramento. Tinha apenas 28 anos e deixou uma pequena, mas significativa, obra poética de cunho simbolista, que hoje consta nas principais antologias da Língua Portuguesa.

CHOPIN E NIETSZCHE, NA VISÃO DE GUY DE POURTALÉS

O biógrafo mais conhecido de Chopin, Guy de Pourtalés, escreve uma linda página sobre o Noturno em dó menor op. 48 e transcreve um trecho do filósofo alemão F. Nietszche, comparando ambos, compositor e escritor, através de suas obras. Dessa forma: “Quando ouço o Noturno em dó menor (op. 48) onde, através de tanto sofrimento contido, esplende, contudo, misturado com a desgraça, este ideal, que não se constrói senão sobre as alegrias criadoras do espírito, penso numa página escrita por Nietszche (...). É este belo Canto da Noite, onde passam as visões negras e azuis de Chopin, seu olhar de flor, seus olhos de menina, e seu coração tão “extremamente, incrivelmente velho”. Alguns fragmentos destas estrofes me parecem fornecer ao Noturno de que falo - e à solidão final em que agora o Poeta vai entrar – um comentário digno deles.

O canto da noite
É noite: eis que se ergue mais alta a voz das fonte marulhantes.
E minha alma é também uma fonte marulhante.

É noite: eis que se elevam todas as canções de todos os amantes.
E minha alma é também uma canção de amante.

Há em mim algo de inquieto e intranquilizável que quer elevar a voz.
Há em mim um desejo de amor que fala, ele próprio, a linguagem do amor.

Sou luz: ah! se eu fosse noite! Minha solidão, porém, está em ser envolvido de luz.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

VOLTADO PARA O FUTURO

No primeiro dia em que o vi, ele entrou na Sala dos Professores, no intervalo das aulas, e me pareceu uma pessoa muito feliz. Contava coisas de New York, de sua alegria ao ir dar aulas na Juilliard, do Metrô sempre cheio, do mau-humor novaiorquino... De como se come bem em São Paulo... E tudo me pareceu sobretudo saudades do Brasil...
Pois ele, Alphonse Poulin, tinha morado em São Paulo, muitos anos atrás, como integrante do Balé da Cidade. E agora estava na Escola Municipal de Bailado do Teatro Municipal de São Paulo, assistindo as aulas das classes mais adiantadas.
Na segunda vez em que o vi, na semana seguinte, na mesma sala, ele falava de grandes bailarinos do passado, de Alicia Alonso, que depois de sua trajetória brilhante, agora já mal consegue levantar-se. Havia uma ponta de melancolia manchando a clareza de sua alegria, a ênfase de sua fala em um português com um sotaque muito leve, ao mencionar nomes de artistas que conheceu e admirou, e que já não estão entre nós.
E depois citou a nossa Bidu Sayão, cantora admirável que o pai dele apreciava muito. Olhou para mim, e eu entrei na conversa. Falamos um pouco de cantores de ópera. Ele lamentou a morte, no ano passado, de um grande Soprano coloratura, a quem muito admirava.
- A vida artística do bailarino é muito curta... O músico tem mais sorte, tem uma vida artística mais longa...
E dividiu um pão-de-queijo com a Diretora, Esmeralda, ao que observei que eles lembravam a divisão do pão de Santo Antonio, no mês de junho. E ele falou de Portugal, onde morou por uns tempos, anos atrás; contou das festas populares, festas juninas, dos bairros que têm, cada qual, sua própria música; contou que em alguns locais a fala portuguesa é quase clássica, ainda usam o “vós”...
Sua expressão era de alegria, mas seu tema recorrente mostrou-se novamente ser a passagem do tempo. E agora me pareceu sobretudo saudades do modo de vida de um passado distante, que não volta mais...
Então Alphonse Poulin voltou-se para o Professor Roberto, falou sobre os alunos, fazendo comentários muito bons, apertou a mão do pianista Ronaldo, tecendo elogios. Acrescentou algumas coisas muito positivas sobre o trabalho da Escola.
E novamente me pareceu uma pessoa muito feliz. Que vai embora no sábado e já está levando uma saudade. A saudade de um futuro que encontrou aqui, naquelas crianças maravilhosas, prestes a decolar, a enfrentar o mundo e a carreira de bailarino, a mesma carreira que ele enfrentou um dia, apesar de saber que a “a vida artística do bailarino é muito curta”.
E então aquela alegria me pareceu esconder saudades do futuro, um futuro que inexoravelmente virá, mas que não lhe pertence. E com o qual, mesmo assim, ele contribuiu com tanta dedicação, com tanto empenho, em seus poucos dias em São Paulo.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A TERCEIRA VOZ

Creio que foi o exercício constante de leitura das obras para canto, do compositor Modeste Mussorgsky, que fiz, durante tantos anos, com o grande Baixo brasileiro Estêvão Maya-Maya. Foi, sim, com certeza, a partir dessa leitura que desenvolvi uma percepção a mais, uma percepção que passou a me acompanhar sempre que ouço canto em uma língua que desconheço. É o caso da língua russa, e também da alemã.

O som da outra língua é pura música. Às vezes mais doce, às vezes mais áspero, mas sempre musical. Uma sintaxe com uma semântica que sabemos que existe, mas desconhecemos, e é um caminho misterioso, de sombras e luz, que se esconde enquanto se mostra.

E quando essa pura música das palavras se soma aos sons musicais, ela é uma terceira melodia que se insinua entre o que a voz revela e o piano (ou outro instrumento) acentua. Pois sabemos que ela diz alguma coisa, mas podemos apenas intuir o que seria, já que a compreensão, terreno plano e seguro, nos escapa.

Então, partilhamos aqueles momentos de beleza muito especial: o som da voz e o som do piano, que se completam; e o som das palavras, não revelado, traduzido apenas pela inflexão e pela sensibilidade do intérprete, como uma terceira voz que se espraia entre as duas outras, concreta mas irreal, bela mas velada.

Só os grandes intérpretes conseguem despertar essa magia. É o caso de Estêvão Maya-Maya, cantando em língua russa, a quem tive a honra de acompanhar ao piano, e ao mesmo tempo apreender o que a arte vocal pode ser, pode alcançar e pode traduzir, mesmo que fechada em incompreensão verbal.

As canções de Robert e Clara Schumann que Angela Diel e Liliane Kans apresentaram em São Paulo dia 13 de julho de 2010, no Grande Auditório do MASP, confirmaram esta impressão de magia e beleza, e evocaram em plenitude a terceira voz, a voz do idioma desconhecido. Ambas apresentam um entrosamento perfeito, e, sendo ótimas no domínio de cada meio de expressão, mantém-se integradas e cumprindo o papel determinado pelo autor em todos os momentos, mas transcendendo a leitura da partitura, dando-lhe vida.

Em Frauenliebe und Leben, op 42, de Robert Schumann, principalmente. Ali estava uma bela voz trazendo outra bela voz cujas palavras tinham um sentido que eu não decodificava, mas que consubstanciava todas as sensações que circundam o sentimento do amor, e que o piano sublinhava com tanta propriedade que não foi preciso ler a tradução para perceber o que Chamisso, o poeta, estava dizendo. E o mesmo aconteceu com os outros poetas românticos alemães – que, na origem, buscavam a palavra sem música, no plano apenas verbal, e que pelas mãos dos grandes compositores e das grandes intérpretes, tornaram-se música também. A terceira, a clara e límpida voz que é só expressão.

domingo, 15 de agosto de 2010

MINHA PRIMEIRA PROFESSORA DE PIANO

Acho que ela não tinha intenção de se tornar professora. E acho, até, que nunca mais deu aulas de piano, só para mim.

Então, aquela jovem senhora, recém casada, vinda de Curitiba, trazendo seu piano, só concordou em dar aulas para a filha de seus vizinhos por amizade e por carinho. Afinal, a vizinha sempre a ajudava quando ela, na primeira gravidez, passava mal durante dias a fio. E ela achava muita graça na menina de cinco anos que, sempre que aprendia uma nota nova, queria escrever uma música...

Acho também que não foi por muito tempo, pois logo, no Colégio Salesiano recém inaugurado em Cambé, uma freira começou a dar aulas de piano. Além disso, o bebê já não deixava muito tempo para minha primeira professora, mamãe recente.

Um pouco mais tarde, - e eu era ainda criança - o casal e os dois filhos voltaram para Curitiba, onde os íamos visitar sempre que viajávamos para esta cidade. Pois a amizade perdurou por muito tempo. E alguns anos depois, também nós mudamos para Campinas, onde meus pais haviam descoberto que havia uma grande tradição de ensino de piano.

E eu já era adolescente quando soube que ela, aquela senhora elegante e fina, sempre arrumada – mesmo quando eu aparecia em casa dela logo de manhã – estava com um câncer devastador.

Ainda adolescente, me formei em piano. E logo depois fomos a Curitiba, e, como sempre, fomos visitá-la.

Ela estava em casa de sua mãe, sem poder sair do leito. Estava com um turbante azul, o rosto maquilado, batom bem vermelho, camisola e penhoar também azuis. Como sempre, elegante. Sentei ao lado dela, que sorriu o tempo todo, e ela me perguntou muitas coisas: os autores que eu mais gostava, como tinha sido minha formatura, se eu gostava de dar aulas... E parecia muito, muito feliz. Seus olhos brilhavam muito, e o sorriso não abandonou seu rosto em nenhum momento...

Pouco tempo depois, ela morreu.

Depois de muitos anos, falávamos de elegância. De repente, eu lembrei da minha primeira professora de piano.E perguntei à minha mãe porque uma pessoa tão doente, que nem podia sair da cama, estava tão maquilada. Pois só então eu percebi que isso era muito estranho.

E minha mãe me contou o que a mãe dela, na ocasião, lhe dissera: colocar uma maquilagem carregada, de cor bem forte, fora um pedido da própria doente.

Para que eu não percebesse o quanto ela estava abatida. Para que aquele, que ela sabia que seria o nosso último encontro, fosse só, só alegria.

domingo, 1 de agosto de 2010

MÚSICA E PINTURA, UNIDAS NO TEMPO

No começo era o som bruto. Aos poucos, numa intensa busca da harmonia, surgiram alguns rudes instrumentos musicais. Depois, apareceram as primeiras representações desenhadas do êxtase musical, relacionado com a dança, parte de um cerimonial mágico do homem das cavernas. Era o início, há seis mil anos, das relações entre a pintura e a música.

Música e pintura sempre estiveram em interação constante. Isto, apesar das diferenças fundamentais de estrutura. E também das relações diferentes mantidas por criador e receptor de cada uma delas. Historicamente, a pintura serviu muito mais à música do que vice-versa. Inclusive, documentando a vida musical anterior à invenção da escrita desta.

Num painel de seis milênios de artes visuais, a música está sempre presente: como representação da atividade musical em si (instrumentos, intérpretes e suas variadas combinações); como representação da sua função social nas “cenas de gênero” e ainda como ponto de partida do pitagorismo, com toda a influência deste nas outras artes e ciências. Mais recentemente, ocorreu a transfiguração pictórica da música em cores e movimentos tidos como rítmicos.

Na arte das cavernas, a música está relacionada com a dança: feiticeiros invocadores ou suplicantes dançam em suas cerimônias. Objetos de civilizações antigas trazem em sua decoração instrumentos como a harpa, a lira, o tamborim, o oboé duplo, os aulos helênicos, flautas de cujas origens existem diversas versões lendárias, inclusive a de Orfeu.

O matemático e filósofo Pitágoras, de Samos, foi iniciado na essência da música através das teorias órficas. Com um monocórdio, ele determinou experimentalmente as relações numéricas entre os sons, estabelecendo a base da música matemática. A concepção numérica manteve-se por muito tempo na mística e na Astronomia, mas os números não tinham o mesmo significado abstrato que têm para nós: cada número tinha a sua representação espacial, uma extensão que aludia a uma forma geométrica. Os números, manejados, erigiam realidades espaciais, criando a beleza autônoma, independente de ser um atributo: a beleza harmônica. A concepção numérica levada às últimas conseqüências pelos gregos influiu pouco na ciência, mas foi fundamental para o desenvolvimento da arte grega e renascentista, cativando a imaginação de artistas de todas as épocas.

Das nove musas gregas, Euterpe (“deleite, a que encanta”) é a titular da música. Está presente nos vasos gregos como no Parnaso, de Rafael, ou no Musas Inquietantes, de Giorgio de Chirico. A décima musa dos gregos foi Safo (630-570 A.C.), poetisa e musicista; uma gravura anônima que ilustra um dos capítulos do Livro das Mulheres mais Famosas, de Boccacio, representa-a tocando alaúde e tendo aos pés outros instrumentos da época.

Os romanos criaram pouco em termos de música, assim como nas outras artes e ciências, mas adotaram o variado instrumental dos povos que despojaram. O Tríptico das Bodas Aldobrandinas e murais de Herculano e Pompéia mostram os mesmos instrumentos dos etruscos e dos gregos, mais os herdados das conquistas – inclusive o órgão hidráulico, vindo de Alexandria, que na Idade Média tornou-se peça base da música religiosa.

O SOM DOS ANJOS MEDIEVAIS

A evolução da música no período medieval pode ser seguida através de afrescos e pinturas bizantinas e das miniatura policromadas dos manuscritos medievais, que servem de mostruário dos instrumentos da época. A obra medieval que reúne mais melodias e mais instrumentos é o Códice das Cantigas de Santa Maria, do Rei Alfonso X, o Sábio, manuscrito do século XIII conservado na Biblioteca do Escorial. A música, de versão fiel e notação perfeita, é toda ilustrada por miniaturas e vinhetas, que mostram mais de trinta instrumentos.

Os anjos munidos de trombetas são personagens obrigatórios das representações medievais do Apocalipse. Já os coros musicais angélicos estão presentes em muitas obras, durante uma larga faixa de tempo, desde a Coroação da Virgem, de Giotto. O Políptico do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eick, terminado em 1432, foi um marco na história da pintura; em um de seus painéis, anjos músicos acompanham Santa Cecília, que toca órgão. Fra Angelico, Piero della Francesca, Stephan Lockner, Mabuse, Hans Memling, Melozzo de Forli, Zurbarán, El Greco, Agostino de Duccio (escultor), Lucca della Robbia – todos fizeram obras sacras com representações de músicos-anjos; e Mathias Grünewald, o maior e mais terrível de todos os pintores góticos místicos, criou a obra-prima Políptico de Isenheim, onde o painel, que representa um concerto de anjos, inspirou uma Sinfonia a Paul Hindemith, autor do século XX que escreveu ainda uma ópera, Mathis der Mahler, sobre a vida do pintor.

Durante o Renascimento, os maiores pintores, principalmente na Itália, eram também músicos. Leonardo da Vinci apresentou-se na corte de Ludovico, o Mouro, em Milão, superando todos os outros músicos ao cantar acompanhado da lira. Da mesma forma, Giovanni Bellini, Rafael, Melozzo de Forli, Carpaccio, Michelangelo, Piero di Cosimo, Ticiano, Giorgione, Sebastiano del Piombino, Giovanni di Udini, Pardemone, Passano, Bonifacio, Tintoretto e Paolo Caliari, o Veronês – todos eles tocavam algum instrumento, participavam de concertos e colocavam a prática da música em muitos de seus quadros, às vezes como tema principal (como o Concerto Campestre, de Giorgione, ou as Bodas de Caná, do Veronês, de 1563, onde os músicos são as figuras dele próprio, de Tintoretto, Bassano e Ticiano). Alemães, flamengos e holandeses também se auto-retrataram como músicos: Dürer, no Retablo Jobach, de 1500, e Teniers, o Jovem, tocando contrabaixo com a família.

MÚSICA E PINTURA, LIVRES

Velazquez interpreta o sentimento musical do espanhol em Os Músicos, onde a própria composição dos rostos esboça uma lira imaginária. O mesmo sentimento musical se mantém à tona durante o período em que predominou o quadro de gênero, onde a veia dos artistas é às vezes popularizante, às vezes moralizadora. Entre os holandeses discípulos de Frans Hals prevalece a primeira linha; Pieter Codde, Jan Miense Milenaer, Judith Leister e Adriaen von Ostade fizeram diversas variações em torno do tema O Ouvido. Moralizador é, por exemplo, O Triunfo da Morte, de Brueghel, Jan Steen prefere o quadro de gênero, retratando lares burgueses, e Gerard van Honthorst escolhe o ambiente cortesão; Jacob Ochervelt, Gaspar Netscher e Philip Mercier colocam em suas pinturas musicais personalidades da alta sociedade; a partir daí, Watteau e outros difundem “as festas galantes”.

Compor música inspirada em quadros é processo típico do Ultra-romantismo. Liszt compôs diversas obras baseadas em pinturas, como o Totentanz, inspirado na obra-prima de Orcagna, O Triunfo da Morte. Movimentos musicais posteriores também o fizeram, como o realista (Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky) e o impressionista (L’Ile Joyeuse, de Debussy, criado sobre a obra-prima de Watteau – L’Embarquement pour l’Ile de Cythère).

A partir do Impressionismo, as relações entre música e pintura se mantêm cada vez mais estreitas, enquanto a pintura liberta a cor do desenho, a música libera o som da harmonia tonal. Manet, Cezanne, Toulouse-Lautrec e Debussy testemunham isso claramente. Matisse foi músico; Dufy, Picasso, Braque, Kandinsky, Klee e Mondrian viveram em ambiente musical e têm a música como uma constante em sua obra, que a literatura especializada adjetiva com termos musicais. Assim, Matisse cria em seus quadros “sonoras polifonias cromáticas”; o Violino Vermelho, de Dufy, é exemplo do “cromatismo musical”. Picasso se esforça para criar em pintura uma “linguagem musical”. Braque evoca J. S. Bach em tubos de órgão e Kandinsky, em O Espiritual da Arte (1910), escreve que “os olhos são martelos e a alma um piano de muitas cordas, e o artista é a mão que toca”.

Em torno de Kandinsky e Klee aglutina-se um grupo de músicos e pintores vienenses: Berg, Webern e Schonberg. Este, um renovador em música que é também pintor. E a música e a pintura do século XX prosseguem em suas trocas de recursos – a música emprestando para a pintura sua utilização do inconsciente, a pintura emprestando para a música sua caracterização concreta e espacial – que cada vez mais as aproximam e estreitam, inclusive através da utilização de recursos audiovisuais da eletrônica. As artes cinética, óptica, telearte são provas de que as possibilidades das artes são variadas e infinitas, assim como variada e infinita é a capacidade de renovação das pessoas.

Artigo publicado in Arte Hoje, (revista mensal) ano 3, nr. 27, setembro de 1979, pp. 36-38, ed. Rio Gráfica e Editora.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

ANIVERSÁRIO DE LONDRINA

Uma história em dois tempos

PRIMEIRO TEMPO

Nos meus 12, 13 anos, passei um certo tempo fazendo leituras regulares de uma partitura que estava sendo escrita. E foi assim: o compositor, que era meu professor de piano, ia até minha casa, colocava a música no piano, sentava-se no sofá, no fundo da sala. E pedia que eu tocasse. Depois, pedia que eu repetisse. Levantava-se, ia até o piano, corrigia algumas notas, ou cortava um trecho, sentava-se no sofá novamente e eu relia o trecho corrigido.

Um dia, não sei se foi porque perguntei, ele me disse que ia participar de um concurso. E me mostrou o poema que estava colocando em música. Depois, providenciou uma cópia para mim.

O tempo passou. Com certeza, foi pouco tempo. E não mais trabalhamos aquela partitura.

Mas não demorou muito e ele nos comunicou, lá em casa, que havia sido premiado. E estava muito, muito feliz.

A música era o Hino a Londrina, premiado em um concurso que comemorou os 25 anos da cidade. O compositor, o Maestro Andrea Nuzzi (1901-1974), napolitano que, depois de viver cerca de 30 anos em Buenos Aires, com sua esposa, também italiana, a cantora lírica e professora de canto Sra. Ermi D’Aprile (pseudônimo), veio para o Brasil e se radicou em Cambé, cidade vizinha de Londrina.

Cambé – a cidade onde nasci.

No dia das comemorações do aniversário ele me convidou, e deixou que eu levasse 2 amigas, para a estréia do Hino, cantando em um grande Coral, na Concha Acústica de Londrina.

Foi um grande evento. E o Hino a Londrina foi oficializado na data da estréia.

SEGUNDO TEMPO

Logo depois, mudei com minha família para Campinas, onde me formei em piano e comecei a carreira de jornalista.

No início dos anos 70, mudei para São Paulo. Em 1977, deixei o jornalismo e comecei a trabalhar com música, justamente em dois acervos de partituras de unidades da Secretaria Municipal de Cultura. Primeiro, na Discoteca Pública Municipal, hoje chamada Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo. Mais tarde, no Arquivo de Partituras do Teatro Municipal de São Paulo.

Em 1987 publiquei o livro Mulheres Compositoras, que me abriu muitas portas e me aproximou de gente simpática, inteligente e talentosa.

No ano passado, depois de muita troca de idéias, de livros e de materiais com uma dessas pessoas – a pianista Eliana Monteiro da Silva, que trabalhou vida e obra de Clara Schumann, pianista e compositora reconhecida internacionalmente – ela veio nos visitar, e comemoramos sua obtenção do título de Mestre pela USP.

Na hora do chá, falei alguma coisa de Londrina, e ela comentou que, quando o avô materno ainda estava vivo, ia sempre lá passar as férias. E, quando disse o nome do avô, eu o reconheci: era o poeta da letra do Hino a Londrina.

Foi muito emocionante, neste mundo que é tão grande e tão pequeno, encontrar a neta do poeta cujas palavras memorizei (embora com alguns lapsos) e cuja sonoridade, com notas do hino, convivem comigo. Às vezes, percebo que estou cantarolando: “Londrina, cidade de braços abertos / a todos os filhos do nosso Brasil / e a todos aqueles / de pátrias distantes / que aqui confiantes / sob um pálio anil / seu lar construíram / e aos filhos se uniram / do nosso Brasil...”

Só agora me dou conta que a lembrança dessa música, desses momentos, atravessaram cinqüenta anos da minha vida, me alegrando e emocionando, evocando meus primeiros anos, que são também os primeiros anos de muitas cidades. Evocando a epopéia de uma marcha para o Oeste, de muitos sonhos e muitas realizações, na criação de um de seus núcleos principais: a cidade de Londrina, grande capital regional do Norte do Paraná.
Estou feliz por ter estado lá, naquele tempo, naquelas horas, naquele momento solene.
E só posso dizer: “Parabéns, Londrina!”

São Paulo, 2 de junho de 2010

ONEYDA ALVARENGA E SEUS POEMAS QUE FORAM MUSICADOS

O nome de Oneyda Alvarenga está ligado ao folclore, à Discoteca Pública Municipal e à amizade com Mário de Andrade. Tão ligado que sua obra poética fica sempre em segundo plano. Nem por isso seus contemporâneos deixavam de lembrá-la como a poetisa de A menina boba; e seus poemas desse livro foram musicados por compositores de alto nível e em proporção considerável, para quem produziu relativamente pouco em termos de poesia.

O que ela havia sonhado, antes de entrar para o Departamento de Cultura, era um emprego que a deixasse “estudar, poetar, escrever sobre literatura e música”, como confessa no Prefácio das Cartas entre ela e Mário de Andrade, editadas em 1983. Mas o rumo de sua vida, e principalmente a inteireza da dedicação com que se atirou ao trabalho da Discoteca Pública Municipal – que, em homenagem mais que merecida, hoje se chama Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo – levaram a poesia para outro plano, e ela morreu com um único livro publicado: A menina boba, São Paulo, E. C. Revista dos Tribunais, 1938. Edição de 200 exemplares.
Antes deste livro, Oneyda havia escrito Canções perdidas, e a esse trabalho se refere na apresentação das Cartas: ”(...) Em brevíssimo tempo, Mário me telefonou para me dizer que gostara dos meus versos e precisava falar comigo sobre o livro, na minha próxima aula em casa dele (...) Em toda a minha vida jamais aconteceu outro dia miraculoso feito aquele, em que o juízo de alguém admirado e respeitado intelectualmente ao máximo, me garantiu que eu era poeta. Essa garantia se converteu imediatamente numa coisa ainda mais bela e profunda: pela única e gloriosa vez, senti agudamente que eu era”.

Esse mesmo modo simples e despojado de narrar um sentimento forte, vivido cerca de cinqüenta anos antes da publicação das Cartas, é o que caracteriza A menina boba. Dividido em oito partes (que chamarei séries) – “A menina boba”, “Brusca andorinha”, “Verso e prosa”, “Asa ferida”, “A menina exausta”, “Domaram-te, andorinha!”, “Noturnos” e “A menina insolúvel”, é uma obra relativamente pequena: 62 poemas, todos curtos. A maior parte tem cinco versos e o maior poema tem apenas vinte e um. Todos são de métrica livre e com rimas brancas; modernistas, portanto. Escritos sempre em primeira pessoa, mas variando os temas, a tônica dos poemas é a sensorialidade, uma sensorialidade de viver e sentir a vida.

Em sua atividade literária, Oneyda Alvarenga foi apoiada por Mário de Andrade e por Manuel Bandeira, e dedica o livro a ambos. O poeta pernambucano, embora em menor escala que Mario de Andrade, teve importância em sua atividade poética, providenciando a publicação, em periódicos e antologias, de outros poemas que não os do livro.

OS POEMAS MUSICADOS

Talvez a proximidade para com os compositores, permitida e até mesmo forçada por seu trabalho na Discoteca, que em seus primeiros anos realizava gravações, tenha facilitado aos músicos o acesso aos poemas de A menina boba. Mas não foram apenas os que estiveram ligados aos primórdios do Departamento de Cultura que se interessaram pelo livro. Ao todo, consegui relacionar Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e Clorinda Rosato, do grupo que teve obras gravadas pela Discoteca, e Cláudio Santoro, Hans-Joachim Koellreuter e Everett Helm, que não tiveram essa ligação. Note-se que, dirigindo a Discoteca Pública Municipal e lutando por mais de vinte anos para executar na íntegra o projeto inicial do Departamento de Cultura, Oneyda Alvarenga foi o agente mais imediato do projeto musical nacionalista de Mário de Andrade, mas foi “adotada”, como poeta, por compositores de tendência radicalmente oposta. Isto, em uma época em que a polêmica nacionalismo versus universalismo era acirrada entre os músicos, e os grupos se dividiam com paixão e veemência.

AS OBRAS SERIAIS

Cláudio Santoro e Hans-Joachim Koellreuter estavam na “oposição”, criando música de acordo com as tendências européias da época, música serial ou dodecafônica, criada pela chamada Escola de Viena, de cuja técnica Koellreuter foi o introdutor no Brasil.

Hans-Joachim Koellreuter, músico alemão, veio para o Brasil em 1937, em plena efervescência do Departamento de Cultura e do projeto nacionalista de Mário de Andrade. A bagagem cultural trazida da Alemanha permitiu-lhe implantar, no Brasil, um projeto estético voltado para as técnicas de composição em vigência na Europa, entre as quais o serialismo. Compôs, em 1943, Poema, para voz média e piano, (o VIII de “A menina insolúvel”), onde desenvolve, em apenas 14 compassos, com cerca de 45´ de duração, uma obra ritmicamente bem variada. Em 1945 compôs os Noturnos para voz média e quarteto de cordas que, segundo um programa encontrado dentro da partitura de Poema (material da Coleção Oneyda Alvarenga), foram apresentados na Alemanha no dia 28.10.1948, tendo como intérpretes Gerda Fritz, contralto, Ottomar Voigt e Anton Teichert, violinos, Fritz Roth, viola e Wilhelm Ratze, violoncelo.

Editados pela Editorial Cooperativa Interamericana de Compositores em 1947, publicação nr. 59, em redução para voz e piano, os também miniaturais Noturnos são ritmicamente mais regulares, mas têm textura mais elaborada que o Poema. Em A menina boba, a série tem esse mesmo nome, mas consta de mais um poema não musicado, e tem originalmente ordem diferente.

Cláudio Santoro, amazonense, na época da publicação dos poemas de Oneyda, era um jovem professor de violino que começava a dedicar-se à composição. Iniciado na música serial por Koellreuter, com quem formou o Grupo Música Viva, adotou esta técnica para compor em 1944 a canção A menina exausta nr. XII, com a qual obteve em 1945 o Primeiro Prêmio Ernesto Dornelles, em concurso da Associação Riograndense de Música. Esta peça foi publicada em 1946 pela Editorial Cooperativa Interamericana de Compositores, publicação nr. 43, junto com a de nr. IV da Série “Asa ferida”. As duas canções, em fac-símile da publicação nr. 43 e mais duas canções, A menina exausta nr. I e nr. II, foram publicadas em meados dos anos 80 na Alemanha, com versão do texto em alemão por O. B. Claren. O Catálogo de Compositores do MEC indica ainda outra canção escrita sobre versos de Oneyda, A menina exausta nr. III, composta em 1944. Indica também que as canções, das quais tivemos acesso às partituras (aqui relacionadas e integrantes do Acervo Oneyda Alvarenga) foram gravadas em 1982 para a RBM –Mannhein, por Carmen Wintermayer, acompanhada pelo pianista Frederic Capon.

AS OBRAS NACIONALISTAS

De acordo com o Catálogo de Obras de Compositores Brasileiros, editado pelo MEC, Camargo Guarnieri compôs, sobre versos de Oneyda, Dois Poemas: Eu te esperei na hora silenciosa e Vieste enrolado no perfume dos manacás. Escritos para voz média e piano, são datados de 1942, mas em novembro de 1977, data da edição do Catálogo do compositor, ainda se achavam em manuscrito. A Enciclopédia da Música Brasileira, Edição de 1998, menciona as obras, mas não menciona a autoria do texto.
Francisco Mignone compôs A menina boba em 1939 (seu Catálogo não indica quais são os poemas), cuja estréia se deu no dia 3 de julho de 1944, na Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, por Alice Ribeiro, S, acompanhada ao piano pelo autor. Mignone escreveu em 1960, Seis canções, para coro SATB, também sem indicação dos poemas.

A terceira representante do grupo nacionalista, Clorinda Rosato, foi a menos conhecida entre os três, e abandonou a atividade de compositora cerca de 30 anos antes de falecer, o que se deu em 1985. Em setembro de 1981 deu um recital de suas próprias obras pianísticas para a então Divisão de Discoteca e Biblioteca de Música do IDART (ou seja, a própria Discoteca Pública Municipal, em outra estrutura administrativa e com o nome anterior ao atual). Clorinda musicou um poema de A menina boba em 1943, e talvez até o tenha esquecido, pois a pequena canção não consta da relação de obras publicada em seu verbete na Enciclopédia Brasileira de Música, nem da relação de obras feitas por ela mesma, para a Divisão mencionada. Consultamos o original, de seu próprio punho, que se encontra na Coleção Oneyda Alvarenga. A canção, para voz média, com acompanhamento de piano, é uma verdadeira miniatura, de harmonia simples e muito delicada: dura pouco mais de um minuto (cerca de 75 a 80 segundos). O poema é o IV da Série A menina exausta.

Os poemas não foram aproveitados apenas para canto, mas também como fonte de inspiração: em 1943, Francisco Mignone publicou uma peça para piano, dedicada a Oneyda Alvarenga, intitulada Doçura de manhãzinha fresca, ou seja, os primeiros versos do poema X da série A menina boba.

UMA OBRA À PARTE

O americano Everett Helm, que estudou com Malipiero e Vaughn Williams, esteve no Brasil em 1945, conforme notícia da revista Brasil Musical nr. 9. Musicólogo e compositor, teve uma obra apresentada durante sua estada no Rio de Janeiro pelo Quarteto Borghert. Não sabemos como teria travado conhecimento com a obra de Oneyda Alvarenga, mas musicou os poemas nr. III de Asa ferida, nr. VII de Domaram-te, Andorinha e nr. IV A menina boba. Em uma das duas cópias heliográficas das músicas, constantes da Coleção Oneyda Alvarenga, há um cartão pessoal do compositor, com os dizeres manuscritos: “Here is the result. I like the poems very much. I hope you Will like the music. With cordial greetings”.

Para concluir: é uma pena que canções compostas em um passado relativamente próximo, como estas, estejam fora do repertório de nossos intérpretes. Pessoalmente, ouvi uma única vez, em 1974, no MASP, os Noturnos de Koellreuter, na bela interpretação de Ula Wolff.