segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A TERCEIRA VOZ

Creio que foi o exercício constante de leitura das obras para canto, do compositor Modeste Mussorgsky, que fiz, durante tantos anos, com o grande Baixo brasileiro Estêvão Maya-Maya. Foi, sim, com certeza, a partir dessa leitura que desenvolvi uma percepção a mais, uma percepção que passou a me acompanhar sempre que ouço canto em uma língua que desconheço. É o caso da língua russa, e também da alemã.

O som da outra língua é pura música. Às vezes mais doce, às vezes mais áspero, mas sempre musical. Uma sintaxe com uma semântica que sabemos que existe, mas desconhecemos, e é um caminho misterioso, de sombras e luz, que se esconde enquanto se mostra.

E quando essa pura música das palavras se soma aos sons musicais, ela é uma terceira melodia que se insinua entre o que a voz revela e o piano (ou outro instrumento) acentua. Pois sabemos que ela diz alguma coisa, mas podemos apenas intuir o que seria, já que a compreensão, terreno plano e seguro, nos escapa.

Então, partilhamos aqueles momentos de beleza muito especial: o som da voz e o som do piano, que se completam; e o som das palavras, não revelado, traduzido apenas pela inflexão e pela sensibilidade do intérprete, como uma terceira voz que se espraia entre as duas outras, concreta mas irreal, bela mas velada.

Só os grandes intérpretes conseguem despertar essa magia. É o caso de Estêvão Maya-Maya, cantando em língua russa, a quem tive a honra de acompanhar ao piano, e ao mesmo tempo apreender o que a arte vocal pode ser, pode alcançar e pode traduzir, mesmo que fechada em incompreensão verbal.

As canções de Robert e Clara Schumann que Angela Diel e Liliane Kans apresentaram em São Paulo dia 13 de julho de 2010, no Grande Auditório do MASP, confirmaram esta impressão de magia e beleza, e evocaram em plenitude a terceira voz, a voz do idioma desconhecido. Ambas apresentam um entrosamento perfeito, e, sendo ótimas no domínio de cada meio de expressão, mantém-se integradas e cumprindo o papel determinado pelo autor em todos os momentos, mas transcendendo a leitura da partitura, dando-lhe vida.

Em Frauenliebe und Leben, op 42, de Robert Schumann, principalmente. Ali estava uma bela voz trazendo outra bela voz cujas palavras tinham um sentido que eu não decodificava, mas que consubstanciava todas as sensações que circundam o sentimento do amor, e que o piano sublinhava com tanta propriedade que não foi preciso ler a tradução para perceber o que Chamisso, o poeta, estava dizendo. E o mesmo aconteceu com os outros poetas românticos alemães – que, na origem, buscavam a palavra sem música, no plano apenas verbal, e que pelas mãos dos grandes compositores e das grandes intérpretes, tornaram-se música também. A terceira, a clara e límpida voz que é só expressão.

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