terça-feira, 31 de agosto de 2010

VOLTADO PARA O FUTURO

No primeiro dia em que o vi, ele entrou na Sala dos Professores, no intervalo das aulas, e me pareceu uma pessoa muito feliz. Contava coisas de New York, de sua alegria ao ir dar aulas na Juilliard, do Metrô sempre cheio, do mau-humor novaiorquino... De como se come bem em São Paulo... E tudo me pareceu sobretudo saudades do Brasil...
Pois ele, Alphonse Poulin, tinha morado em São Paulo, muitos anos atrás, como integrante do Balé da Cidade. E agora estava na Escola Municipal de Bailado do Teatro Municipal de São Paulo, assistindo as aulas das classes mais adiantadas.
Na segunda vez em que o vi, na semana seguinte, na mesma sala, ele falava de grandes bailarinos do passado, de Alicia Alonso, que depois de sua trajetória brilhante, agora já mal consegue levantar-se. Havia uma ponta de melancolia manchando a clareza de sua alegria, a ênfase de sua fala em um português com um sotaque muito leve, ao mencionar nomes de artistas que conheceu e admirou, e que já não estão entre nós.
E depois citou a nossa Bidu Sayão, cantora admirável que o pai dele apreciava muito. Olhou para mim, e eu entrei na conversa. Falamos um pouco de cantores de ópera. Ele lamentou a morte, no ano passado, de um grande Soprano coloratura, a quem muito admirava.
- A vida artística do bailarino é muito curta... O músico tem mais sorte, tem uma vida artística mais longa...
E dividiu um pão-de-queijo com a Diretora, Esmeralda, ao que observei que eles lembravam a divisão do pão de Santo Antonio, no mês de junho. E ele falou de Portugal, onde morou por uns tempos, anos atrás; contou das festas populares, festas juninas, dos bairros que têm, cada qual, sua própria música; contou que em alguns locais a fala portuguesa é quase clássica, ainda usam o “vós”...
Sua expressão era de alegria, mas seu tema recorrente mostrou-se novamente ser a passagem do tempo. E agora me pareceu sobretudo saudades do modo de vida de um passado distante, que não volta mais...
Então Alphonse Poulin voltou-se para o Professor Roberto, falou sobre os alunos, fazendo comentários muito bons, apertou a mão do pianista Ronaldo, tecendo elogios. Acrescentou algumas coisas muito positivas sobre o trabalho da Escola.
E novamente me pareceu uma pessoa muito feliz. Que vai embora no sábado e já está levando uma saudade. A saudade de um futuro que encontrou aqui, naquelas crianças maravilhosas, prestes a decolar, a enfrentar o mundo e a carreira de bailarino, a mesma carreira que ele enfrentou um dia, apesar de saber que a “a vida artística do bailarino é muito curta”.
E então aquela alegria me pareceu esconder saudades do futuro, um futuro que inexoravelmente virá, mas que não lhe pertence. E com o qual, mesmo assim, ele contribuiu com tanta dedicação, com tanto empenho, em seus poucos dias em São Paulo.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A TERCEIRA VOZ

Creio que foi o exercício constante de leitura das obras para canto, do compositor Modeste Mussorgsky, que fiz, durante tantos anos, com o grande Baixo brasileiro Estêvão Maya-Maya. Foi, sim, com certeza, a partir dessa leitura que desenvolvi uma percepção a mais, uma percepção que passou a me acompanhar sempre que ouço canto em uma língua que desconheço. É o caso da língua russa, e também da alemã.

O som da outra língua é pura música. Às vezes mais doce, às vezes mais áspero, mas sempre musical. Uma sintaxe com uma semântica que sabemos que existe, mas desconhecemos, e é um caminho misterioso, de sombras e luz, que se esconde enquanto se mostra.

E quando essa pura música das palavras se soma aos sons musicais, ela é uma terceira melodia que se insinua entre o que a voz revela e o piano (ou outro instrumento) acentua. Pois sabemos que ela diz alguma coisa, mas podemos apenas intuir o que seria, já que a compreensão, terreno plano e seguro, nos escapa.

Então, partilhamos aqueles momentos de beleza muito especial: o som da voz e o som do piano, que se completam; e o som das palavras, não revelado, traduzido apenas pela inflexão e pela sensibilidade do intérprete, como uma terceira voz que se espraia entre as duas outras, concreta mas irreal, bela mas velada.

Só os grandes intérpretes conseguem despertar essa magia. É o caso de Estêvão Maya-Maya, cantando em língua russa, a quem tive a honra de acompanhar ao piano, e ao mesmo tempo apreender o que a arte vocal pode ser, pode alcançar e pode traduzir, mesmo que fechada em incompreensão verbal.

As canções de Robert e Clara Schumann que Angela Diel e Liliane Kans apresentaram em São Paulo dia 13 de julho de 2010, no Grande Auditório do MASP, confirmaram esta impressão de magia e beleza, e evocaram em plenitude a terceira voz, a voz do idioma desconhecido. Ambas apresentam um entrosamento perfeito, e, sendo ótimas no domínio de cada meio de expressão, mantém-se integradas e cumprindo o papel determinado pelo autor em todos os momentos, mas transcendendo a leitura da partitura, dando-lhe vida.

Em Frauenliebe und Leben, op 42, de Robert Schumann, principalmente. Ali estava uma bela voz trazendo outra bela voz cujas palavras tinham um sentido que eu não decodificava, mas que consubstanciava todas as sensações que circundam o sentimento do amor, e que o piano sublinhava com tanta propriedade que não foi preciso ler a tradução para perceber o que Chamisso, o poeta, estava dizendo. E o mesmo aconteceu com os outros poetas românticos alemães – que, na origem, buscavam a palavra sem música, no plano apenas verbal, e que pelas mãos dos grandes compositores e das grandes intérpretes, tornaram-se música também. A terceira, a clara e límpida voz que é só expressão.

domingo, 15 de agosto de 2010

MINHA PRIMEIRA PROFESSORA DE PIANO

Acho que ela não tinha intenção de se tornar professora. E acho, até, que nunca mais deu aulas de piano, só para mim.

Então, aquela jovem senhora, recém casada, vinda de Curitiba, trazendo seu piano, só concordou em dar aulas para a filha de seus vizinhos por amizade e por carinho. Afinal, a vizinha sempre a ajudava quando ela, na primeira gravidez, passava mal durante dias a fio. E ela achava muita graça na menina de cinco anos que, sempre que aprendia uma nota nova, queria escrever uma música...

Acho também que não foi por muito tempo, pois logo, no Colégio Salesiano recém inaugurado em Cambé, uma freira começou a dar aulas de piano. Além disso, o bebê já não deixava muito tempo para minha primeira professora, mamãe recente.

Um pouco mais tarde, - e eu era ainda criança - o casal e os dois filhos voltaram para Curitiba, onde os íamos visitar sempre que viajávamos para esta cidade. Pois a amizade perdurou por muito tempo. E alguns anos depois, também nós mudamos para Campinas, onde meus pais haviam descoberto que havia uma grande tradição de ensino de piano.

E eu já era adolescente quando soube que ela, aquela senhora elegante e fina, sempre arrumada – mesmo quando eu aparecia em casa dela logo de manhã – estava com um câncer devastador.

Ainda adolescente, me formei em piano. E logo depois fomos a Curitiba, e, como sempre, fomos visitá-la.

Ela estava em casa de sua mãe, sem poder sair do leito. Estava com um turbante azul, o rosto maquilado, batom bem vermelho, camisola e penhoar também azuis. Como sempre, elegante. Sentei ao lado dela, que sorriu o tempo todo, e ela me perguntou muitas coisas: os autores que eu mais gostava, como tinha sido minha formatura, se eu gostava de dar aulas... E parecia muito, muito feliz. Seus olhos brilhavam muito, e o sorriso não abandonou seu rosto em nenhum momento...

Pouco tempo depois, ela morreu.

Depois de muitos anos, falávamos de elegância. De repente, eu lembrei da minha primeira professora de piano.E perguntei à minha mãe porque uma pessoa tão doente, que nem podia sair da cama, estava tão maquilada. Pois só então eu percebi que isso era muito estranho.

E minha mãe me contou o que a mãe dela, na ocasião, lhe dissera: colocar uma maquilagem carregada, de cor bem forte, fora um pedido da própria doente.

Para que eu não percebesse o quanto ela estava abatida. Para que aquele, que ela sabia que seria o nosso último encontro, fosse só, só alegria.

domingo, 1 de agosto de 2010

MÚSICA E PINTURA, UNIDAS NO TEMPO

No começo era o som bruto. Aos poucos, numa intensa busca da harmonia, surgiram alguns rudes instrumentos musicais. Depois, apareceram as primeiras representações desenhadas do êxtase musical, relacionado com a dança, parte de um cerimonial mágico do homem das cavernas. Era o início, há seis mil anos, das relações entre a pintura e a música.

Música e pintura sempre estiveram em interação constante. Isto, apesar das diferenças fundamentais de estrutura. E também das relações diferentes mantidas por criador e receptor de cada uma delas. Historicamente, a pintura serviu muito mais à música do que vice-versa. Inclusive, documentando a vida musical anterior à invenção da escrita desta.

Num painel de seis milênios de artes visuais, a música está sempre presente: como representação da atividade musical em si (instrumentos, intérpretes e suas variadas combinações); como representação da sua função social nas “cenas de gênero” e ainda como ponto de partida do pitagorismo, com toda a influência deste nas outras artes e ciências. Mais recentemente, ocorreu a transfiguração pictórica da música em cores e movimentos tidos como rítmicos.

Na arte das cavernas, a música está relacionada com a dança: feiticeiros invocadores ou suplicantes dançam em suas cerimônias. Objetos de civilizações antigas trazem em sua decoração instrumentos como a harpa, a lira, o tamborim, o oboé duplo, os aulos helênicos, flautas de cujas origens existem diversas versões lendárias, inclusive a de Orfeu.

O matemático e filósofo Pitágoras, de Samos, foi iniciado na essência da música através das teorias órficas. Com um monocórdio, ele determinou experimentalmente as relações numéricas entre os sons, estabelecendo a base da música matemática. A concepção numérica manteve-se por muito tempo na mística e na Astronomia, mas os números não tinham o mesmo significado abstrato que têm para nós: cada número tinha a sua representação espacial, uma extensão que aludia a uma forma geométrica. Os números, manejados, erigiam realidades espaciais, criando a beleza autônoma, independente de ser um atributo: a beleza harmônica. A concepção numérica levada às últimas conseqüências pelos gregos influiu pouco na ciência, mas foi fundamental para o desenvolvimento da arte grega e renascentista, cativando a imaginação de artistas de todas as épocas.

Das nove musas gregas, Euterpe (“deleite, a que encanta”) é a titular da música. Está presente nos vasos gregos como no Parnaso, de Rafael, ou no Musas Inquietantes, de Giorgio de Chirico. A décima musa dos gregos foi Safo (630-570 A.C.), poetisa e musicista; uma gravura anônima que ilustra um dos capítulos do Livro das Mulheres mais Famosas, de Boccacio, representa-a tocando alaúde e tendo aos pés outros instrumentos da época.

Os romanos criaram pouco em termos de música, assim como nas outras artes e ciências, mas adotaram o variado instrumental dos povos que despojaram. O Tríptico das Bodas Aldobrandinas e murais de Herculano e Pompéia mostram os mesmos instrumentos dos etruscos e dos gregos, mais os herdados das conquistas – inclusive o órgão hidráulico, vindo de Alexandria, que na Idade Média tornou-se peça base da música religiosa.

O SOM DOS ANJOS MEDIEVAIS

A evolução da música no período medieval pode ser seguida através de afrescos e pinturas bizantinas e das miniatura policromadas dos manuscritos medievais, que servem de mostruário dos instrumentos da época. A obra medieval que reúne mais melodias e mais instrumentos é o Códice das Cantigas de Santa Maria, do Rei Alfonso X, o Sábio, manuscrito do século XIII conservado na Biblioteca do Escorial. A música, de versão fiel e notação perfeita, é toda ilustrada por miniaturas e vinhetas, que mostram mais de trinta instrumentos.

Os anjos munidos de trombetas são personagens obrigatórios das representações medievais do Apocalipse. Já os coros musicais angélicos estão presentes em muitas obras, durante uma larga faixa de tempo, desde a Coroação da Virgem, de Giotto. O Políptico do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eick, terminado em 1432, foi um marco na história da pintura; em um de seus painéis, anjos músicos acompanham Santa Cecília, que toca órgão. Fra Angelico, Piero della Francesca, Stephan Lockner, Mabuse, Hans Memling, Melozzo de Forli, Zurbarán, El Greco, Agostino de Duccio (escultor), Lucca della Robbia – todos fizeram obras sacras com representações de músicos-anjos; e Mathias Grünewald, o maior e mais terrível de todos os pintores góticos místicos, criou a obra-prima Políptico de Isenheim, onde o painel, que representa um concerto de anjos, inspirou uma Sinfonia a Paul Hindemith, autor do século XX que escreveu ainda uma ópera, Mathis der Mahler, sobre a vida do pintor.

Durante o Renascimento, os maiores pintores, principalmente na Itália, eram também músicos. Leonardo da Vinci apresentou-se na corte de Ludovico, o Mouro, em Milão, superando todos os outros músicos ao cantar acompanhado da lira. Da mesma forma, Giovanni Bellini, Rafael, Melozzo de Forli, Carpaccio, Michelangelo, Piero di Cosimo, Ticiano, Giorgione, Sebastiano del Piombino, Giovanni di Udini, Pardemone, Passano, Bonifacio, Tintoretto e Paolo Caliari, o Veronês – todos eles tocavam algum instrumento, participavam de concertos e colocavam a prática da música em muitos de seus quadros, às vezes como tema principal (como o Concerto Campestre, de Giorgione, ou as Bodas de Caná, do Veronês, de 1563, onde os músicos são as figuras dele próprio, de Tintoretto, Bassano e Ticiano). Alemães, flamengos e holandeses também se auto-retrataram como músicos: Dürer, no Retablo Jobach, de 1500, e Teniers, o Jovem, tocando contrabaixo com a família.

MÚSICA E PINTURA, LIVRES

Velazquez interpreta o sentimento musical do espanhol em Os Músicos, onde a própria composição dos rostos esboça uma lira imaginária. O mesmo sentimento musical se mantém à tona durante o período em que predominou o quadro de gênero, onde a veia dos artistas é às vezes popularizante, às vezes moralizadora. Entre os holandeses discípulos de Frans Hals prevalece a primeira linha; Pieter Codde, Jan Miense Milenaer, Judith Leister e Adriaen von Ostade fizeram diversas variações em torno do tema O Ouvido. Moralizador é, por exemplo, O Triunfo da Morte, de Brueghel, Jan Steen prefere o quadro de gênero, retratando lares burgueses, e Gerard van Honthorst escolhe o ambiente cortesão; Jacob Ochervelt, Gaspar Netscher e Philip Mercier colocam em suas pinturas musicais personalidades da alta sociedade; a partir daí, Watteau e outros difundem “as festas galantes”.

Compor música inspirada em quadros é processo típico do Ultra-romantismo. Liszt compôs diversas obras baseadas em pinturas, como o Totentanz, inspirado na obra-prima de Orcagna, O Triunfo da Morte. Movimentos musicais posteriores também o fizeram, como o realista (Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky) e o impressionista (L’Ile Joyeuse, de Debussy, criado sobre a obra-prima de Watteau – L’Embarquement pour l’Ile de Cythère).

A partir do Impressionismo, as relações entre música e pintura se mantêm cada vez mais estreitas, enquanto a pintura liberta a cor do desenho, a música libera o som da harmonia tonal. Manet, Cezanne, Toulouse-Lautrec e Debussy testemunham isso claramente. Matisse foi músico; Dufy, Picasso, Braque, Kandinsky, Klee e Mondrian viveram em ambiente musical e têm a música como uma constante em sua obra, que a literatura especializada adjetiva com termos musicais. Assim, Matisse cria em seus quadros “sonoras polifonias cromáticas”; o Violino Vermelho, de Dufy, é exemplo do “cromatismo musical”. Picasso se esforça para criar em pintura uma “linguagem musical”. Braque evoca J. S. Bach em tubos de órgão e Kandinsky, em O Espiritual da Arte (1910), escreve que “os olhos são martelos e a alma um piano de muitas cordas, e o artista é a mão que toca”.

Em torno de Kandinsky e Klee aglutina-se um grupo de músicos e pintores vienenses: Berg, Webern e Schonberg. Este, um renovador em música que é também pintor. E a música e a pintura do século XX prosseguem em suas trocas de recursos – a música emprestando para a pintura sua utilização do inconsciente, a pintura emprestando para a música sua caracterização concreta e espacial – que cada vez mais as aproximam e estreitam, inclusive através da utilização de recursos audiovisuais da eletrônica. As artes cinética, óptica, telearte são provas de que as possibilidades das artes são variadas e infinitas, assim como variada e infinita é a capacidade de renovação das pessoas.

Artigo publicado in Arte Hoje, (revista mensal) ano 3, nr. 27, setembro de 1979, pp. 36-38, ed. Rio Gráfica e Editora.