quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

TOBIAS BARRETO - A MÚSICA E OS MÚSICOS EM SUA POESIA


Nascido em Campos, Sergipe, no dia 7 de junho de 1839, e falecido em Recife, Pernambuco, aos cinquenta anos, Tobias Barreto foi poeta, iniciando com Castro Alves a poesia condoreira, na qual o poeta bahiano destacou-se e se firmou, restando hoje como a figura proeminente do gênero. 

Tobias Barreto poeta se revela um grande admirador dos músicos, e consta que ele mesmo escrevia poesia e música, da mesma forma que hoje os compositores populares. Entre seus poemas, destacam-se inúmeros sobre músicos, Chopin, Cherubini, Liszt e ... (pasmem!) Arthur Napoleão, que passou para a história da música no Brasil quase que apenas como compositor e editor, além de ter dado aulas para a Maestrina Chiquinha Gonzaga, já  adulta, quando ela quis aperfeiçoar sua técnica pianística.
 
Arthur Napoleão dos Santos era português e apenas quatro anos mais novo que Tobias Barreto. Fez carreira como  pianista prodígio na Europa, apresentando-se   em diversos países, e veio ao Brasil aos 14 anos, ocasião em que Tobias Barreto deve tê-lo assistido, pois escreveu um longo poema, de 8 estrofes, em sua homenagem. Neste poema, ele diz coisas como: “Quantos anjos não quiseram/contigo trocar as mãos!” (...)  e, nos versos finais, “O teu piano é uma força/e o teu talento  uma lei”.

Não obstante sua grande admiração pelos músicos em geral e sua louvação ao piano, Tobias Barreto não parecia acreditar muito no interesse dos brasileiros por uma música mais fina. Pelo menos é o que revela seu poema

ANO BOM    

Era um claro salão. Moças brincavam
pela entrada feliz do novo ano.
Mãozinhas d’anjo saltitavam cândidas
sobre o teclado do ótimo piano.

Um sertanejo, que presente estava,
de rude trajo e sapatões de sola,
diz ao dono da casa em tom agreste:
“Capitão, mande vir uma viola...”

Hilaridade! O bruto continua:
“Não sei que graça tem o tal piano...”
E, volvendo-se às moças que o encaram:
“Vossas mercês não gostam do Bahiano?”

Gargalhada geral. “Como? Isto é sério?”
Replica o monstro que se erguendo avança
para as meninas e lhes diz convicto:
“Não duvidem; eu toco e tudo dança”.

Chega a viola, o único pecúlio
de um dos muitos escravos da fazenda,
mas falta o arame; manda-se um moleque
buscar depressa um carretel na venda.

Volta o emissário; a cousa está completa
e  o sertanejo  afina o instrumento;
começa o toque, um sétimo batido
no estilo bárbaro em que sopra o vento.

Ninguém resiste!... Ao som,  que sai do peito
da viola franzina e amarela,
os homens formam roda, e as próprias moças
não têm reservas e se metem nela...

Chovem as palmas, o baiano impera:
em círculo tão nobre um fato raro!...
Movimentos, requebros e trejeitos,
de que vergonha é natural reparo.

Mas nem todas, que dançam,  mostram queda
para o mister. Aquela  é desasada,
move o corpo sem graça e...coitadinha!...
nem sequer sabe dar uma umbigada!...

Porém a bela do piano...espanta!...
Pisada e porte de pessoa destra,
abre os braços, que mimo! O diabrete
saracoteia, como velha mestra.

A  loura coma esparsa!...Onde esta moça
já viu dançar-se ao toque da viola?
Pondo a língua entre os dentes, dá sorrindo
um estalo que finge castanhola!...

E o baiano prossegue, o fogo aumenta,
tudo ali se transforma em harmonia;
mas, por engano, topam no matuto
que termina e repete; “Eu não dizia?!...”

(Este ensaio é dedicado a meu primo, José Gomes de Lima, morador de Aracaju, cidade onde morou Tobias Barreto)


terça-feira, 27 de novembro de 2012

O PIANO, UM PIANO... TODOS OS PIANOS


É de Aníbal Machado (1894-1964) o conto O Piano, em que narra a saga de uma família de Ipanema, nos tempos da Segunda  Guerra Mundial, lutando para se desfazer de um bem recebido por herança.

“Custear o enxoval de Sara com a venda; transformar a saleta em quarto para o futuro casal – teriam que dispor dele de qualquer maneira”, é o projeto da família de João de Oliveira, que recebe inúmeros pretendentes á venda, anunciada previamente em jornais. Desde mães e filhas, negociantes, uma estudante com sua pasta de músicas, o professor, todos avaliam mal o piano, muito antigo, cujo toque provoca um acesso de latidos em Doli, a cachorrinha da casa.

O personagem principal, João, oscila entre a necessidade prática do momento e o sentimento em relação ao objeto: “Já não fazia questão do preço. Queria apenas que o seu piano fosse tratado com certa atenção.(...)O único móvel que falava da presença dos antepassados. Meio eterno. Ele e o oratório”. Nem quando o oferece a um parente, para que ele fique em família, tem sucesso. A mulher, Rosália, mais prática, mesmo com tristeza, se contrapõe à solução definitiva que ele encontra, diante da rejeição geral ao piano, a de atirá-lo ao mar. Mas até o carregador que ele contrata se recusa a atirá-lo, pois lhe parecia “um crime”.

É com os moleques da praia do Pinto e da Latolândia que ele consegue uma solução, ainda que tenha vindo em partes, como aos poucos se lhe arrancarem os metais, depois o tampo, e finalmente, ao atravessar a avenida da praia para chegar ao mar, motociclistas da polícia impedem o cortejo, pedindo-lhe documentos, depois sendo impedido de continuar por ter passado das dezoito horas.

À noite, quando cai uma tempestade, eles acordam e pensam no piano abandonado na praia. Depois, em um sono agitado, João de Oliveira, sonha com seu piano tocando tudo o que se havia tocado nele... “Uma porção de mãos, Rosália... Mãos diferentes de diversas mulheres. As de minha avó, as de minha mãe; as tuas; as de minhas tias, as de Sara. (...) Nunca ouvi músicas tão bonitas. Uma coisa sublime, Rosália. (...) De repente, os dedos se retiraram; ouviu-se a Marcha Fúnebre; o piano se fechou a si  mesmo ...tomou a enxurrada... deslizou para o oceano...”

No dia seguinte, se consuma o lançamento do piano ao mar. Diante da família já conformada, João se mantém ainda divagando sobre o fato, conjeturando: "Deve estar longe a estas horas. Sempre debaixo das águas... Passando por coisas estranhas. Destroços de navios. Submarinos. Peixe. Um móvel que nunca saiu desta sala...”

Depois é intimado a comparecer ao distrito policial, por suspeitarem que dentro do piano haveria uma estação de rádio clandestina, e mais tarde ainda a Capitania do Porto o procura para pedir satisfação do que atirou ao mar. Mas, depois de todos os transtornos, as duas ironias  que finalizam o conto: o noivo de Sara,  que lamenta não ter mais um piano, pois vive atormentado pelo ruído da artilharia, na qual trabalha.  E depois um comprador, que já havia visitado a casa, volta para lhe fazer uma proposta de compra...
SEREIA TOCANDO  PIANO...

O personagem João de Oliveira, apesar de toda a imensa poesia do contista Aníbal Machado, previu quase tudo o que o piano poderia encontrar no fundo do mar. Menos o que o olhar do poeta Cassiano Ricardo (1895-1974), contemporâneo do escritor, viu como possibilidade em seu belo conto: que o piano fosse encontrado por uma sereia, que o toca à noite.

Seu poema SEREIA TOCANDO PIANO, que tem como epígrafe “Eu vi as ondas engolirem-no”. (Aníbal Machado), apanha a sugestão do encontro do móvel -  ao qual ambos, contista e poeta, dão vida e sentimentos humanos -  com uma sereia. O poema, longo, versejado em décimas, com estrofes de nove versos, tem como refrão  “A sereia está tocando piano / tocando piano no fundo do mar”. A presença do refrão, que tem pequenas variantes, mas em essência afirma sempre   o toque da sereia, o transforma em canção – sem a música. Como o piano...

Cassiano Ricardo se demonstra condoído pela sorte do piano, tal e qual João de Oliveira, colocando em  um vocabulário romântico a expressão de seu  eu-lírico. Por muito longo, o poema não será transcrito,  apenas a última de suas oito estrofes:

               E – coisa que ninguém sabe explicar –
               Na sala onde os convivas se reúnem,
               Há a falta de alguém,  um lugar mudo,
               Onde o piano foi piano, o seu lugar.
               E ao ouvido da noiva um rumor surdo,
               Por mais que o evento lhe pareça absurdo,
               A todo instante chega, singular.
               É o piano que a sereia está tocando
   tocando  tocando no fundo do mar!

(Este pequeno ensaio é dedicado a Sergio de Nucci, em homenagem ao respeito que demonstra pelos bens materiais e imateriais de seus antepassados)

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CHIQUINHA GONZAGA E ERNESTO NAZARETH









CHIQUINHA  GONZAGA  E  ERNESTO   NAZARETH

A HARMONIA EM UM ENCONTRO DE PERSONALIDADES  OPOSTAS

Embora muito diferentes em seus aspectos biográficos, Francisca Edwiges Neves Gonzaga (1847-1935), a CHIQUINHA GONZAGA  e Ernesto Julio de Nazareth, o NAZARETH (1863-1934) apresentam muitas semelhanças no que diz respeito  ao aspecto mais importante do que deixaram: sua música.

Compondo primordialmente para a camada intermediária da burguesia,na época uma classe média emergente, cultivadora do piano e dos saraus familiares, Nazareth, que cultuava a música de Chopin e sonhava em ser um virtuose do piano, compõe valsas inspiradíssimas e tangos buliçosos. O acabamento formal do que escreve revela, todavia, um conhecimento bem acentuado da música dos conjuntos populares, os chorões, onde aparecem com frequência os repiques dos cavaquinhos, os solos plangentes do violão, enfim, ele estiliza com primor os recursos desses instrumentos.

Chiquinha Gonzaga, todavia, voltou-se para o teatro e colocou sua inspiração na música programática de peças leves, sobretudo do teatro de revista, gênero sempre de passagem, já que voltado para o aqui-agora da cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império e depois da República. Mas esta escolha colocou-a frente à música cantada, de modo que muito do que ela compôs tem ou teve letra em algum momento,  às vezes até mais de uma letra e até  paródias muito maliciosas. Isto não impediu que as  músicas fossem tocadas  ao piano ou em conjuntos, como acontece com o célebre “Abre alas”, que tem uma letra original, uma variante que se tornou célebre e a versão só instrumental que é sempre ouvida, sobretudo no Carnaval.

CONTEMPORANEIDADE

Chiquinha Gonzaga era pouco mais de quinze anos mais velha que Nazareth; ele nasceu em março de 1863, em novembro do mesmo ano ela se casou. Quando ele compõe a primeira música editada, a polca “Cruz, perigo!”, em 1879, o teatro de revista, nos moldes do vaudeville, era apenas iniciado, através da criação de Arthur de Azevedo, “O  Rio de Janeiro em 1877”. E Chiquinha já atuava como o pianista e compositora, depois do naufrágio de seu segundo casamento, com João Batista de Carvalho. Em trinta anos, ela se profissionalizou, aprendeu a escrever para orquestra, tornou-se famosa e assumiu lutas em prol da própria categoria.Em 1917, enquanto o SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) tomava forma, por esforço sobretudo de Chiquinha Gonzaga, Nazareth perde a filha Maria de Lourdes. Uma luta pela categoria, outro sofre uma perda pessoal.

Com o advento da gravação, tanto Chiquinha Gonzaga como Ernesto Nazareth interpretam suas obras para os microfones dos aparelhos de época, no início do século XX, o que serve de referência para quem deseja conhecer-lhes a interpretação.  

Não apenas os sistemas de gravação, mas outros inventos que a tecnologia tornou possíveis e que hoje continuam sendo usados, muito aperfeiçoados, estão temporalmente inseridos em suas vidas: o automóvel, chamado “engenho” em seus primórdios, o telefone,  o avião, a produção de máquinas de escrever em escala industrial, o sistema periódico de elementos, a descoberta e exploração do petróleo, a iluminação a gás e depois a iluminação elétrica...Fatos históricos relevantes, como a Guerra do Paraguai e a guerra de Secessão, nos Estados Unidos, na década de 1860,a  Primeira Guerra Mundial... E, coisas menos sérias:os bailes carnavalescos em salões, que surgiram em 1847, ano do nascimento de Chiquinha, o confete, introduzido pela também compositora e empresária Viúva Guerreiro...

O MERECIDO  RECONHECIMENTO

Um  aspecto que marca a semelhança entre os dois está o reconhecimento que obtiveram, ainda em vida,  de nomes como Francisco Braga (1868  -1945), que escreveu carta no dia 17 de outubro de 1925, data em que Chiquinha foi homenageada:”Estarei em espírito, ahi, associando-me com muito enthusiasmo às manifestações que vaes receber, batendo palmas bem quentes, bem estrepitosas, cada vez que uma sentida cantilena brasileira da lavra da grande Chiquinha vibrar nesse ambiente culto de artistas da palavra e do som”. Já Nazareth  obteve reconhecimento de Alberto Nepomuceno(1864 -1920), que o convidou para apresentar-se nos Concertos Sinfônicos da Exposição Nacional em comemoração ao centenário de Abertura dos Portos (1808-1908), e o levou a apresentar-se no Instituto Nacional de Música, no qual acompanhou ao piano o violoncelista Heitor Villa-Lobos (1887-1959).Em 1922,homenageia Villa-Lobos dedicando-lhe  seu Improviso, e este dedica-lhe seu Choro nr 1, para violão.

Entretanto, ambos ficam por muito tempo fora das salas de concerto, apesar do reconhecimento  dedicado a cada um (em diferentes ocasiões) pelo grande musicógrafo Mário de Andrade (1893-1945). Não ficaram, entretanto, esquecidos pelos chorões e outros grupos populares cultivadores da música brasileira. A pianista Carolina Cardoso de Menezes (19   -2000) durante muitos anos manteve programa na Rádio Nacional do Rio de Janeiro cujo tema de introdução era o Brejeiro, de Nazareth. Mas, nas novas gerações, só em 1963 – centenário de nascimento de Ernesto Nazareth - o choro volta ao piano, com a gravação, por Eudóxia de Barros, do LP Ouro sobre Azul, com músicas desse compositor. A obra de Chiquinha Gonzaga, nunca de todo abandonada, voltou a ser ouvida na década de 1980 através da gravação de vários intérpretes no LP Evocação nr 2, do Selo Eldorado.

A aproximação dos inegáveis méritos de ambos ainda recentemente ficou evidenciada pela revisão e colocação das partituras de ambos, quase que simultaneamente, cada qual em seu próprio site, pelo Instituto Moreira Salles, que assim disponibiliza o acesso às suas obras.

De lá para cá, nestes 50 anos, o choro foi sendo gradativamente reconhecido pelos pianistas e hoje é interpretado por inúmeros instrumentistas virtuoses que apreciam as origens da legítima música brasileira urbana. 

NOSSO RECITAL COM OBRAS DE CHIQUINHA GONZAGA E ERNESTO NAZARETH

Ao somar os dois compositores, nenhum deles perde, e ambos ganham muito, pois são ambos inspirados, originais, brilhantes. Mesclar o repertório com obras de um e outro salienta o talento de ambos. Por isso, nesta apresentação de 14 peças de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, arranjadas para piano a 4 mãos de modo a  ressaltar seu caráter pianístico e ao mesmo tempo acrescentá-las de recursos dos conjuntos instrumentais de choro, fizemos o programa em uma ordem que obedece apenas à sequência do que entendemos ser mais bonito e mais agradável a quem ouve, sem qualquer intenção didática ou separação por autor.

Alternamos peças conhecidas com peças menos ouvidas, de modo a trazer a público, pelo chamariz do sucesso, músicas que merecem ser conhecidas e por acaso não são. Por vezes, mantemos o andamento muito brilhante que  pianistas virtuoses adotaram, e,  por outras vezes,  interpretamos pelo andamento menos brilhante, mas que é o indicado ou até gravado pelo próprio compositor.

Apenas a peça que fecha o programa recebe  tratamento diferenciado: o Corta-jaca – Gaúcho – Cá e lá, de Chiquinha Gonzaga, tem um arranjo que se aproxima de uma pequena fantasia. Esta é a música com a qual a maestrina, que recebeu o título “Alma Cantante do Brasil” encerrava suas apresentações. 
  

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

CENTENÁRIO - POEMA SINFÔNICO


Com ensaios iniciados em 1921, o Poema Sinfônico CENTENÁRIO, que inaugurou  o Monumento do Ipiranga em 7 de setembro de 1922, tem um caráter heróico e apoteótico que se coaduna com o espírito do evento para o qual foi composto: o Centenário da Independência do Brasil. Escrito por Savino De Benedictis (1883-1971) para grande orquestra, banda, banda de clarins, cornetas e tambores e coral a 4 vozes (cantando também em uníssono), foi apresentado  sob a regência do maestro capitão Joaquim Antão Fernandes (1864-1949). Esta grande obra foi executada como apoteose do evento, iniciado às 8h45, no local onde o Príncipe D. Pedro proclamou a Independência. 

Com a presença do Dr. Washington Luís Pereira de Souza, Governador do Estado  e demais autoridades civis e militares, como  o Comandante da II a. Região Militar, Gal. Rondon, ouviu-se o Hino Nacional Brasileiro (música de Francisco Manoel da Silva, letra de Osório Duque Estrada). A seguir o Dr. Washington Luís cortou o fio que prendia a bandeira nacional e inaugurou o Monumento do Ipiranga. O Deputado Dr. Roberto Moreira fez um discurso, seguindo-se mais seis. Terminados os discursos, ouviu-se o Hino da Independência (música de D. Pedro e letra de Evaristo da Veiga), e finalmente Centenário - Poema Sinfônico.

Além de grande orquestra, constituída de 100 professores de São Paulo, a execução teve ainda a atuação da Banda da Força Pública e da Banda Giuseppe Verdi, de São Paulo; da Banda Carlos Gomes, de Araras; da Banda Carlos Gomes, de Jaú; da Banda Saltense, de Salto de Itu, da Banda Liberdade, de São Roque, de bandas de clarins, cornetas e tambores, ao todo mais de quinhentos instrumentistas.
A orquestra que se apresentou não é nominalmente identificada, mas, à época, muito dos grandes eventos da capital eram acompanhados pela orquestra do Centro Musical de São Paulo, entidade de classe fundada em 1913 pelo próprio Savino De Benedictis, autor da música Centenário. Podemos imaginar que fosse essa a orquestra a atuar nessa comemoração, pois era ela que fazia os concertos e a parte musical das óperas do Teatro Municipal e que mais tarde veio a ser incorporada ao próprio Teatro, como Corpo Estável.
A parte vocal foi executada pelos corais do Colégio Cristovão Colombo, do Instituto Da. Anna Rosa, da Sociedade Coral Benedetto Marcello e da Sociedade Coral da Cia. Lírica Nacional, em conjunto com soldados da Força Pública e 1.500 escoteiros, totalizando um coro de cerca de cinco mil vozes. Essas informações são de um recorte de jornal da época, infelizmente não identificado, em notícia do próprio dia 7 de setembro de 1922.

 O jornal O Estado de S. Paulo de 7 de setembro de 1972, ano do sesquicentenário da Independência, acrescenta muitos detalhes a estas informações. Por exemplo, que quando a execução do Poema Sinfônico Centenário terminou, a comitiva de autoridades dirigiu-se ao Museu Paulista, onde o Governador inaugurou novas salas e as duas estátuas dos bandeirantes Raposo Tavares e Fernão Dias Paes, feitas por Luís Brizzollara por encomenda do diretor do Museu, o historiador Affonso d’Escragnolle Taunay.

POESIA E MÚSICA

A música do Poema Sinfônico Centenário se inspira em texto de Francisco Roca Dordal. Tanto a partitura de orquestra quanto a de banda têm como epígrafe, ao iniciar-se cada trecho musical, as primeiras palavras de cada trecho escrito por Roca Dordal. Desse modo, o Andante sostenuto, que abre a peça em 3/2, traz o texto “É a hora da prece e da poesia; da tarde a agonia...” Este trecho, denominado Meditação de D. Pedro, é um tema simples, orquestrado com muito equilíbrio, de modo a manter um espírito de meditação, melancolia e até certa angústia. Em seus últimos compassos, ouvem-se os sinos tocando 4 horas da manhã, com fundo de clarinetas e violas (o autor indica que os sinos devem estar na torre, à distância).

A seguir um trecho coral, a quatro vozes, cantando versos de Henrique de Macedo (1880-1944), poeta de Jacareí, SP. O jornal O Estado de S. Paulo, de 4 de maio de 1921, anuncia a edição do poema sinfônico, mas na verdade foi publicada apenas a parte coral, o restante permanece em manuscrito até esta data.
A orquestração cresce com os versos, mas a intensidade vai diminuindo e alargando até ralentar. Começa o 2º Movimento, denominado Alvorada, Più mosso (mais movido), em 3/4, seguindo a epígrafe “Ei-la a surgir... Tênue, fraca luz envolve a terra”. Este movimento apresenta mais mudanças de dinâmica e de colorido que o anterior. 

Novamente o sino da torre soa cinco horas. Aurora! A orquestra cresce, chegando a “tutti”, e depois de gradativamente ir-se reduzindo, segue o texto “Rompe o sol. Em gargalhar de luz, de calor e de alegria desperta a vida!”. Escrita em 6/8, esta seção é mais alegre. Tem desenhos rítmicos bem marcados, uma corneta que toca ao longe, e a orquestração em cordas e madeiras é muito intensa, mas logo é reduzida; o movimento também se reduz e novamente a orquestração se intensifica, a orquestra toca em “tutti” por 18 compassos. Muda então para 2/4, que é um tempo de marcha, e começa o trecho intitulado Cavalgada. “Caminham os corcéis sobre o macio tapiz”, em Allegro vivacissimo. O som da cavalgada é feito pelos tímpanos, contrapondo-se aos clarinetes, fagotes, violas, violoncelos e contrabaixos.

Entra o Hino Português, apresentado pelos trompetes em 7 compassos. A seguir os trombones apresentam o Hino da Independência, sempre crescendo. Chegando ao fortíssimo, o tema do Hino é parafraseado e a sonoridade fica bem menos intensa, para depois crescer, enquanto entram os instrumentos de percussão e o coro canta em uníssono a primeira estrofe do Hino da Independência, prolongando os versos finais.
O fechamento da obra, entretanto, está no próprio Hino do Centenário: ”Quer ser livre a nação e diz Fico (...)”  agora cantado em uníssono, e em 2/4. Quando a última frase é cantada, violinos e violas fazem, também em uníssono, escalas ascendentes rapidíssimas, até o acorde final, sustentado até terminar o toque de cornetas que arremata a obra. 

OUTRAS  APRESENTAÇÕES 

Este mesmo poema sinfônico (que melhor seria chamar de Poema Coral-Sinfônico) contou com diversas apresentações em São Paulo: inaugurou em 1940, sob regência do maestro Armando Belardi, o Estádio do Pacaembu, hoje chamado Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho. Na versão para banda e coro, faz parte do repertório da Banda Sinfônica da Polícia Militar do Estado de São Paulo e é frequentemente reapresentado. Foi executado também no dia 12 de dezembro de 1983, por ocasião do encerramento das comemorações do centenário de nascimento de Savino De Benedictis, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, gentilmente cedida por seu titular, maestro Eleazar de Carvalho, para a competente e brilhante regência do maestro Silvio Baccarelli, ex-aluno de Savino De Benedictis. O Coral Baccarelli executou a parte vocal desse belo espetáculo de encerramento, apresentado  no Teatro Cultura Artística.
O jornal O Combate, de 7 de setembro de 1922, publicou comentário acerca da obra, escrito por João Sepe, ex-aluno de Savino De Benedictis, onde diz, com acerto, que a obra segue os preceitos da música programática estabelecidos por Hector Berlioz (1803-1869), quando criou a Sinfonia Fantástica. Note-se que este compositor francês, em 1840, organizou um concerto em homenagem ao décimo aniversário da revolução de 1830 (na França), utilizando um efetivo orquestral e coral grande como este do nosso Centenário, dada a natureza do evento que homenageava. 

Um  outro jornal que traz comentários muito interessantes acerca da obra é o Jornal do Commercio, de Jahu, datado de 18 de novembro de 1922, que anuncia apresentação da obra Centenário para as comemorações de 15 de novembro, em frente à Igreja Matriz da cidade. A notícia posterior ao concerto informa que este foi realizado pela Banda Carlos Gomes, sob regência do maestro Heitor Azzi. Na ocasião foram aproveitados os degraus e a torre da igreja, para as salvas e os clarins. No início do canto, os alunos de escolas locais gritaram “Independência ou Morte” e 1800 alunos cantaram o Hino do Centenário, seguido do Hino dos Escoteiros, composto pelo capitão maestro Joaquim Antão Fernandes.

A comemoração de 15 de novembro em São Paulo, no ano de 1922, contou com o 11º.  concerto da Sociedade de Concertos Sinfônicos, no Teatro Municipal, em programa regido pelo maestro Torquato Amore frente à orquestra dessa Sociedade, iniciado pela Sinfonia nr. 1 de Beethoven e encerrado com o Poema Sinfônico Centenário.

ASPECTOS  LITERÁRIOS

Os textos literários, de diferentes autores, que se somam para integralizar o conjunto desta obra, são: o primeiro, em prosa, de autoria do Prof. Francisco Roca Dordal, que é o programa da peça, foi provavelmente escrito especialmente para a ocasião. O Prof. Francisco Roca Dordal é personagem sobre o qual não conseguimos informações. Sabemos apenas que o Terceiro Grupo Escolar Modelo do Brás mudou de nome em 2.12.1938 para Grupo Escolar  Rocca Dordal; em 28.1.1976 foi fundido com o Instituto de Educação Padre Anchieta, para constituir a Escola Estadual de 1º. e 2º. Graus Padre Anchieta.  O segundo texto, em versos cantados no Hino que finaliza o poema sinfônico, autoria do escritor Henrique de Macedo, não constam do livro de poemas que este autor publicou em 1924, Nova primavera, não havendo informação sobre sua procedência.

Ambos são escritores de forte influência parnasiana ou romântica. Parnasiana pelo  aporte formal e romântica pela escolha de temas nacionalistas, com citações de cultura clássica. 

Em jornal não identificado, de 3 de setembro de 1922, o próprio compositor descreve sua obra:
“Meditação – O príncipe regente, mergulhado em íntimos pensamentos. Rompe a aurora. Começa uma fuga, pianíssimo, intensificando-se, com a entrada de clarins e cornetas, que anunciam o despontar da alvorada, num crescendo. Pássaros gorgeiam, o Ypiranga marulha docemente. Avolumam-se os ruídos e sonoridades do dia que se estende prateando os outeiros formosos de Piratininga.

Cavalgada – Estrupidos de corcéis em disparada ressoam na vastidão dos campos. Aproxima-se a escolta luzida e galharda do príncipe. No arruído se distinguem as notas do Hino Português. Iniciam-se, porém, as ardentes estrofes do Hino de D. Pedro que, pouco a pouco avultando-se, funde-se com o Hino da Metrópole, assoberba-o, domina-o, apaga-o.

Apoteose – É o momento em que rompe o coro apoteótico da Independência. Erguer-se-ão as vozes de 3000 soldados, 1500 escoteiros, mais de 1000 alunos de escolas e sociedades corais, como sejam os do Instituto D. Anna Rosa, Christovam Colombo, Sociedade Coral Benedetto Marcello e coro da Companhia Nacional de Óperas Líricas, dirigido pelo maestro Alessio, e outras. Será um momento de intensa emoção e de deslumbrante entusiasmo popular”.

Mas há um outro texto, talvez inédito, de punho do maestro capitão Joaquim Antão Fernandes, autoridade designada pelo Governo do Estado de São Paulo para organizar essa solenidade. Escrito com simplicidade, mas com apuro, nele este mestre, que foi o regente da obra em pauta, descreve o momento e a emoção das comemorações dessa data: “Dia 7 de setembro de 1922. O Brasil com cem anos de independência. O dia de maior glória em toda minha vida pública. Por ordem do governo organizei o concerto nas margens históricas do Ypiranga, em frente ao monumento. Elenco de grande orquestra. Sob a minha regência a Banda da Força Pública, mais quatro bandas do interior, a banda de clarins (a cavalo), bandas de cornetas e tambores, quatro mil escolares, mais ou menos, e quinhentos soldados, executaram o Hino Nacional Brasileiro e o belíssimo poema sinfônico “O Centenário”, escrito, a meu pedido, pelo maestro Savino De Benedictis, letra de Henrique de Macedo, para comemorar o primeiro centenário. Do estrado da regência olhei a multidão cobrindo as dependências do local. O silencio imperava. Os músicos, os cantores, o povo, tinham presa a atenção na minha batuta. Levantei-a, o Hino da Pátria fez-se ouvir nos seus primeiros compassos e depois perto de cinco mil vozes juvenis inundaram de sons o Ypiranga. Eu, o caipira de Batataes, que a pé me aventurara pelo mundo, era o autor daquele feito, que me honrou como musico e como brasileiro”.