domingo, 30 de março de 2014

ARTE E SOCIEDADE - UMA LEITURA POSSÍVEL



O artista é aquele que tem diante de si um grande espelho. Um espelho que reflete o mundo que o rodeia, na realidade do presente, na memória do passado, da virtualidade do futuro. o espelho  converte essa realidade em perspectiva pessoal do artista, pois  mantém   inevitável simbiose com aquele ser humano sensível que se posta em sua frente.

O  mundo ali se reflete inalterado em seu conteúdo, mas altamente alterável em sua forma, seja  qual for o meio de expressão: artes plásticas, música, literatura, artes cênicas, dança. E é isso que o artista faz: altera a forma, mantendo sempre visível e identificável o conteúdo. Viajante do tempo e do espaço, ele singulariza sua obra de modo a tê-la, através dos traços que lhe destina, ligada ao momento histórico em que ela tomou sua forma, nasceu, tornou-se  “algo” – uma obra de arte.

Diante de cada um desses espelhos, de cada um desses artistas, diante de cada obra, a sociedade reage de acordo com o que sua própria sensibilidade  lhe dita: aceitação, negação, indiferença. Não basta o choque da originalidade, nem a perfeição da feitura, nem as palavras que expliquem o artista e a obra de arte. Entre milhões de criações artísticas, estonteado e surpreso com aquele todo diversificado e enorme universo que se lhe oferece à escolha e ao aplauso, a sociedade sempre elege os que a representam. E essas obras mais representativas são sempre aquelas    em que o olhar do  artista, diante de seu espelho, seduzido e envolvido pelo conteúdo que pode reconstruir, escolhe a forma em que, escondido, está seu próprio reflexo.

sexta-feira, 7 de março de 2014

JUANA DE IBARBOUROU (1892-1979)



É  bem adequado comemorar o Dia Internacional da Mulher falando de uma grande poetisa nascida justamente nesta data: 8 de março. De 1892.

É o caso de Juana de Ibarbourou, poetisa uruguaia de reconhecimento internacional, que em 2014 completa 35 anos de seu passamento.

Seria maravilhoso falar dela através de sua poesia. Poder trazer e até traduzir muito da poderosa beleza que ela transmitiu em seus versos. Apesar de que seria bem difícil escolher um, dois ou  mais poemas,  que a representassem em sua fulgurante alegria de viver, tantos e tão bons são todos eles.

Mas mudei meu enfoque, pelo menos por ora. Sou obrigada, diante do que tenho lido e ouvido, da boca e da pena de seus compatriotas, a questionar os valores em que se embasam seus detratores – valores que não  são os de pura análise e/ou conhecimento literário, mas valores embasados em julgamentos morais.

E o mais  lamentável  é que as alegações em que se baseiam não têm grande peso e nenhum significado. Fábrica de alas (Fábrica de asas) é um texto de 15 páginas (137 a 152), em cópia Xerox, possivelmente de um dicionário, que recebi de um uruguaio que não se conformou com meu entusiasmo diante da poesia maravilhosa de Juana. Com este texto, e falando mal dela, realiza a tentativa de um desmonte de sua personalidade, pondo diante de lentes de aumento seus defeitos. Defeitos que, diga-se de passagem, não vão muito além do que temos relatado de outras  poetas e musicistas, e até de pessoas comuns, como a invariável tentativa de esconder a idade, ou a reclusão, quando os anos vão chegando.

Extraído do Archivo Literario de La Biblioteca Nacional, Colección  Juana de Ibarbourou, os dados utilizados por S. R. (prefiro não citar por extenso o nome da autora do texto) são sutilmente manipulados de modo a colocar em destaque sua vaidade feminina: a própria capa é uma foto de 1930, quando já era reconhecida como Poeta das Américas. O reconhecimento foi  no ano de 1929. Nesta foto, ela apagou o próprio rosto, e escreveu:” Em mi escritório de La casa Calle Comercio nº 318. Ano 1930. La cara quedo muy mal, pero el vestido es precioso”. Ao expor um rosto sem fisionomia, o sutil veneno que permeia todo o texto já começa a escorrer e a tentar corroer o que deveria ser uma biografia mais isenta. Para a qual, inclusive, nem há bibliografia.  E a primeira coisa que sugere, para mim, pelo menos, é que uma pessoa nunca deve biografar alguém a quem detesta com tanta veemência.

Entretanto, a poesia de Juana de Ibarbourou continua a correr mundo como uma das vozes mais brilhantes e representativas da poesia américo-hispânica. Dela disse em 1964 Carmen Conde, poeta e crítica espanhola e estudiosa das americanas de língua espanhola:”Juana é a representação lírica da linguagem do amor, da radiante felicidade do corpo enamorado, da assombrosa glória do espírito em amor total”. Ou seja, de uma modernidade sem igual. Lembremo-nos que só agora as mulheres podem exercer e cantar o próprio amor carnal, o que, na juventude da poetisa, nem era aceitável, ou começava a sê-lo.

Entretanto, tanta energia positiva e tanto reconhecimento não merecem de alguns de seus compatriotas o louvor que ela merece. E creio que se pode explicar esta atitude, de uma forma, no momento, apenas impressionista. São as oposições em que nos colocamos no dia a dia, no decorrer, às vezes, de toda a vida. Em relação ao público e ao privado, dilema em que oscilam tantos gestos, e para muitas pessoas uma oposição tão difícil de distinguir. Por outro lado, outro dilema, no qual é preciso estar atento, pela presença tão constante na política,  a oposição entre o que é direito civil, de pessoas em exercício de sua cidadania, garantido por um estado laico – no Brasil, desde a Proclamação da República -- mas que representantes de grupos religiosos teimam em confundir com os dogmas de suas próprias crenças. Um exemplo claro é o casamento entre homossexuais e a própria defesa, em desconsideração com a ciência e com os estudiosos isentos do assunto, da chamada “cura gay”.

Em Juana de Ibarbourou não encontram seus detratores nenhum caso escandaloso a apontar, nenhum embuste financeiro, nada, enfim, que a desabonasse como pessoa em seus 87 anos de existência. É a pura e simples manipulação em favor de uma outra poetisa uruguaia, também boa poetisa, mas que não tem o mesmo ímpeto criador, uma pessoa sofrida e resignada, solitária e triste:  Maria Eugenia Vaz Ferreira (1875-1924). Em sequência à biografia de Juana de Ibarbourou, veio outra do mesmo livro, de R.S., um pouco maior (p. 197 a 221), esta sim, com bibliografia respeitável.

Como já me foi dito pessoalmente, e mais de uma vez, eu deveria gostar mais de Maria Eugenia (como poeta) porque ela era uma pessoa melhor. Lembro-me de, uma vez, e em presença de uma amiga, ter respondido que não fazia julgamento de valores morais, que isto está fora do âmbito de meus interesses. Se um poeta, romancista, pintor ou músico é um verdadeiro artista, isto é que realmente pesa no julgamento de sua obra. A oposição qualidade artística/qualidade moral é despropositada.

O que me parece mais triste, mas é oportuno lembrar,  neste momento em que celebramos as conquistas das mulheres, é que talvez esse tipo de atitude seja mais comum do que parece. O que nos dá o direito de colocar em dúvida os critérios de avaliação literária, artística ou musical, em muitas circunstâncias em que não podemos conhecer a obra em si.

E é mais triste ainda pensar que louvar “virtudes”, para muitas pessoas, é mais importante  que louvar “ talentos”. É uma pena, porque as virtudes vivem e morrem com  as pessoas; o talento, desde que possa vir a público, e receber o necessário reconhecimento, passa incorporar a cultura e a história de uma época.