sábado, 10 de setembro de 2016

OS CONCURSOS MUSICAIS DO DEPARTAMENTO DE CULTURA, DE 1936 A 1938

Curta, mas sem dúvida agitada e fértil foi a gestão de Mario de Andrade como Diretor do Departamento de Cultura, de julho de 1935 a maio de 1938. Suas realizações, e mesmo o que ele apenas criou, sem chegar a implantar diretamente, foram muito além do que a curta memória paulistana registrou.

E entre os eventos mais esquecidos, figuram, por certo, os Concursos que o Departamento de Cultura realizou nos anos de 1936 a 1938.

OS CONCURSOS MUSICAIS DE 1936

A Revista Brasileira de Música, de março de 1936, vol. III, 1º fascículo, registra, na seção Concursos, o regulamento de um concurso instituído pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo. São duas as categorias: peça sinfônica e quarteto de cordas. Resumidamente, o regulamento é o seguinte: As obras devem “se inspirar nos caracteres, tendências e processos rítmico-melódicos da música nacional brasileira, de preferência apresentar uma temática de livre invenção do próprio compositor, sem que sejam utilizados temas colhidos diretamente do folclore musical brasileiro”. Além disso, as peças deveriam ter a duração mínima de 12 minutos, e os originais deveriam ser entregues até o dia 31 de outubro  de 1936.

No mesmo tópico, criava-se o concurso de uma Suíte para Banda, que teria duração mínima de 10 minutos e máxima de 25 minutos, ser de meia dificuldade quanto à execução e conter “uma série de danças populares nacionais, cujos temas serão de preferência colhidos no folclore musical brasileiro”. Os originais deveriam ser entregues até o dia 30 de setembro de 1936.

Na p. 87 do vol. IV, na seção Registro, foram publicados os resultados dos dois concursos de 1936. Quanto à categoria peça sinfônica ”foram apresentados 14 trabalhos e contemplado com 1º Prêmio, o poema sinfônico ‘Rei Mameluco’, de João de Souza Lima (São Paulo), com 2º prêmio, a Sinfonia em ré, de Francisco Casabona (São Paulo), com Menção Honrosa as composições Festa na Vila, de Dinorá de Carvalho (São Paulo), Ubirajara, de Carlos Pagliuchi (São Paulo) e Alvorada, de José de Lima Siqueira (Rio de Janeiro). A Comissão Julgadora desse Concurso foi integrada pelos Profs. Francisco Murino, Francisco Mignone e o regente de orquestra Ernst Mehlich”. 

O concurso de Quarteto de Cordas teve 16 trabalhos apresentados. Os contemplados foram: 1º Prêmio, Quarteto, de Silvio Motto (S. Paulo); 2º Prêmio, Suíte, de Helza Cameu (Rio de Janeiro); 3º Prêmio, Impressões Brasileiras, de Gabriel Migliori (S. Paulo). Foram distinguidos com Menção Honrosa as composições Fim de Tarde, de Assuero Garritano (Porto Alegre), o Quarteto Jacaré, de Ernani Braga (Recife), e o Quarteto Brasil, de Luiz Oliani (S. Paulo). Souza Lima, Mario de Andrade e o Quarteto Haydn julgaram os trabalhos.

Para o concurso de Suíte para Banda, somente três trabalhos foram apresentados, e os mesmos foram premiados, na seguinte ordem: Suíte Brasileira, de Hostílio Soares (Minas Gerais), recebeu o 1º Prêmio; a Suíte Mineira, de Elviro do Nascimento, recebeu o 2º Prêmio, e a Suíte Brasileira, de Luiz Oliani (São Paulo), foi contemplada com o 3º Prêmio. Os trabalhos foram julgados pelo Tte. José Machado, o Major Antão Fernandes e o Prof. Silvio Motto.

OS CONCURSOS MUSICAIS DE 1937

A mesma Revista Brasileira de Música, de 1937, vol. IV, 1º e 2º fascículos, publicou na pág. 67 as condições para participar de concurso de uma peça instrumental. Deveria ser “de forma livre, para pequena orquestra de 10 a 15 instrumentos já nacionalizados, inspirada nas composições instrumentais dos ‘choros’”. Em item à parte, subentende-se que entre os instrumentos já nacionalizados se inscreviam também os instrumentos do quarteto de cordas. O 1º parágrafo esclarece que “as obras, de qualquer maneira deverão se inspirar nos caracteres, tendências e processos da música nacional”. As obras instrumentais deveriam ser entregues até 30 de novembro de 1937.

Na mesma ocasião, também eram publicadas as condições de um concurso para peça coral “constituída de uma série de pequenos corais sem acompanhamento, cuja execução total atinja mais ou menos oito a dez minutos. (...)”. As obras seriam compostas sobre poesias ou estrofes soltas, extraídas da ‘Satírica’ de Gregório de Matos, edição de Afrânio Peixoto, em 1933, da Academia Brasileira de Letras, vol. 4º e 5º. O prazo de encerramento da entrega das peças era 31 de outubro de 1937.

O livro Camargo Guarnieri – Expressões de uma vida, de Marion Verhaalen, registra a premiação do grande compositor nesse concurso, nas duas categorias. A peça instrumental de forma livre que Camargo Guarnieri apresentou, Flor de Tremembé, para quinze instrumentos solistas, tem duração de 7 minutos e foi composta em 1937. Os instrumentos são os seguintes: flauta, clarineta, saxofone barítono, trompa em fá, trompete em dó, trombone, harpa, piano, chocalho, reco-reco, agogô, cuíca, dois violinos, viola e violoncelo. A autora do livro esclarece: ”Em 1937, Guarnieri enviou a peça a um concurso organizado pelo Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Ela recebeu o primeiro prêmio. Provavelmente, foi estreada na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1940”.

Quanto às peças corais, o júri foi composto por Agostino Cantù, Arthur Pereira e João de Souza Lima, que avaliou, no dia 13 de dezembro de 1937, as peças apresentadas. Ainda conforme Marion Verhaalen, Camargo Guarnieri enviou, sob o título de Coisas deste Brasil, um conjunto de três peças: Reprovações, A gente da Bahia e Aos mesmos Caramurus, que receberam o 1º prêmio. As peças provavelmente estrearam em março de 1938.

O 2º lugar foi conquistado pela compositora mineira Dinorá de Carvalho, que apresentou Procissão de Cinzas em Pernambuco e Caramurus da Bahia. Clorinda Rosato, compositora paulista, conquistou Menção Honrosa com seus Quatro Corais, que são feitos sobre os trechos da mencionada Satírica: Anica, o que me quereis; Ouve, ó amigo João; Preso entre quatro paredes, e Quando o mundo se acabar.

As peças premiadas estrearam no dia 14.10.1938 e foram reapresentadas inúmeras vezes pelo Coral Paulistano, no decorrer de mais de 25 anos. O compositor José Barbosa de Britto, também premiado, teve sua peça Babu, como há de ser isto? igualmente reapresentada nestes concertos posteriores.

O CONCURSO MUSICAL DE 1938

                O mesmo volume da Revista Brasileira de Música consigna ainda que estão abertas as inscrições de concurso de uma Abertura para Banda, comemorativa do Cinqüentenário da Abolição dos Escravos e, por isso, “construída obrigatoriamente com temas afrobrasileiros, colhidos no folclore”. A duração estabelecida seria de no máximo 12 min. Prazo de entrega: 30 de abril de 1938.

                Nesta data, 30 de abril de 1938, havia grande confusão política no Brasil, devido ao golpe de Getúlio Vargas e o estabelecimento de uma ditadura, que durou até 1945. Assim, em 23 de maio de 1938, Mario de Andrade redige e encaminha ao Sr. Francisco Pati, que o sucedeu na direção do Departamento de Cultura, a “Exposição dos atos e conseqüências da Missão Folclórica atualmente em viagem pelo Norte do Brasil”. Nela, expõe as razões para a Missão continuar, e o consegue. Do mesmo modo, é provável que o então diretor tenha mantido o Concurso cujos trabalhos já haviam sido recebidos, e levado o Concurso a cabo.

                O júri que julgou as obras do Concurso de Abertura para Banda foi integrado pelos Srs. Tte. José Machado, regente da Banda da Força Pública, Prof. Silvio Motto, do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e Prof. Martin Braunwieser, representando o Departamento de Cultura.

                As obras premiadas foram três: Abertura Curumiassu, de Savino De Benedictis; A preta minha, do Prof. Luiz Oliani, e Abolição – Abertura, de Franklin de Carvalho Jr. Estas informações foram colhidas em nota jornalística da documentação de Savino De Benedictis. A carta que este autor recebeu, avisando da premiação, data de 10 de outubro de 1938 e é assinada pelo então Diretor da Divisão de Expansão Cultural do Departamento de Cultura, o poeta Guilherme de Almeida.

                UMA CURIOSIDADE: ILUSTRAÇÕES LITERÁRIAS DE OBRAS DOS CONCURSOS

                (O original trazia os textos em antiga ortografia, e aqui estão copiados na ortografia atual)
                A Suíte Mineira, de Elviro do Nascimento, 2º Prêmio no concurso de 1936, traz em sua partitura a seguinte descrição: “Allegro – Esse tempo representa um canto em coro pelos roceiros que vão em direção às matas, num ‘mutirão’. Ouvem-se diversas linhas melódicas, genuínas do regionalismo mineiro, onde os instrumentos de madeira em ‘staccato’ imitam a viola. / Intermezzo – O sino da Capelinha do arraial, em dia de festa, toca, chamando os fiéis para assistir aos atos religiosos. Antes do início da missa ouve-se, no coro, a afinação dos instrumentos. Começada a cerimônia, o coro entoa um canto com linhas melódicas alusivas ao ato, porém com a simplicidade da música camponesa mineira, com imitação de harmonium pelos instrumentos de palheta. / Desafio – Retrata, o tempo, um baile no término da festa na roça, cujo trecho melódico é diálogo, no qual há imitação dos deslizes de violas empunhadas pelos roceiros. / Cateretê – Dança de origem selvagem africana. É inspirado à moda mineira. Há imitações de viola, de pandeiros, dos cantos plangentes em dueto, enfim, o equilíbrio do batuque, ritmo original dessa dança, terminando com alegria e vibração”.

                 O Quarteto de Cordas de Gabriel Migliori, 3º prêmio do Concurso de 1936, traz o seguinte texto: Saci-Pererê (Impressões Brasileiras): 1. Tamba-tajá; 2. Saci-Pererê; 3. Cantiga; 4. Boi-bumbá, dança.

                “Saci-Pererê: Silfo. Gnomo das florestas e dos campos do Brasil. Negrinho, de uma perna só, um barrete encarnado na cabeça, um olho vermelho, muito aceso, no meio da testa. Bailarino. Faz tranças na crina dos cavalos, com assobios agudos. Os cavalos que galopam dentro da noite silenciosa. / Bailarino! Símbolo. Alma da mata cujas folhas tremem à sua passagem, ante o alarido das aves e o pânico dos bichos. Espírito da Raça. – Ágil, matinal, anímodo, irreverente! Saci. Brasileiro como há poucos. Serelepe e malicioso. / Aparece nos redemoinhos... As velhas crédulas jogam terços e peneiras no meio do círculo de poeira remexido pelo vento, onde dança o Saci. Ninguém não conseguiu pegar ele não! O Saci-Pererê é bailarino e precisa comparecer em todas as festas da floresta./ Saci-Pererê... / Negrinho. De uma perna só. Um barrete vermelho na cabeça. De uma perna só. Um olho vermelho, muito aceso, no meio da testa. / Aparece à meia-noite, espantando os cavalos... Um assobio agudo... / Nasceu das matas e dos campos. Nasceu da poesia verdadeira da gente simples... / Saci-Pererê... / Silfo. Gnomo das florestas e dos campos do Brasil... / Símbolo. / Dançarino que nem quê!”

                A partitura de regência de Curumiassu – Abertura, de Savino De Benedictis, 1º Prêmio no Concurso de 1938, traz uma Nota Explicativa: ”Temas elaborados – Yayá, você quer morrer e Papae Curumiassu (os trechos de cada melodia estão transcritos em pauta, só a linha melódica). / A introdução é formada de fragmentos do 1º tema, o qual aparece em sua totalidade na letra A, desenvolvido até reaparecer novamente na letra B invertido para o Saxofone Soprano e Oboé, continuando seu desenvolvimento até aparecer o 2º tema na letra C, acompanhado por um movimento contrapontístico que lembra o 1º tema. / Terminada a exposição temática ele aparece novamente, no desenvolvimento por diminuição em forma fugato, letra F. / O autor compôs a presente abertura sobre os dois temas acima mencionados colhidos no folclore afro-brasileiro; modificadas, adaptadas e desenvolvidas conforme as exigências da arte e do bom-gosto”.

                Note-se que o texto de Elviro do Nascimento comenta diversos momentos da vida no campo, e o de Gabriel Migliori descreve apenas o Saci-Pererê, personagem exclusivo da mitologia brasileira. Já o texto de Savino De Benedictis explana os recursos musicais utilizados na composição.

Uma descrição do mundo real, uma viagem pelo imaginário, uma lição de música...