quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

AOS MÉDICOS DO BRASIL, UMA MENSAGEM DE NATAL!



Nunca pensei que algum dia escreveria me dirigindo aos médicos, mas eis que este é um momento propício.
O novo milênio começou há apenas treze anos. Diante dessa percepção de algo tão novo, parece que mesmo a realidade de um passado recente, é algo muito distante. Há todo um marketing do futuro, um futuro só de tecnologias, superposto a um marketing do esquecimento e desprezo às conquistas difíceis e sofridas do passado.
Por isso me dirijo hoje aos médicos. Dentro desse contexto hostil ao passado, que permeia o ensino em geral, é bem possível que nenhum dos formandos em medicina, dos últimos dez anos, saiba quem foi, por exemplo, Albert Schweitzer.
Conheço muito mais o Albert Schweitzer músico e musicólogo que o Dr. Albert Schweitzer médico, mas o admiro igualmente pelas duas atividades. Pois o grande e reconhecido músico que ele era achou não ser suficiente tudo o que fez pela música, pela filosofia, pela teologia, assuntos de seu pleno domínio e, aos trinta anos foi estudar medicina na mesma universidade onde já era professor.
Formado, partiu para a África, instalando-se no Gabão, antiga colônia francesa, acompanhado da esposa, que além dos cursos de arte em que já era professora, cursou enfermagem para ajudá-lo. Apesar de quase não ter aparelhos, pois muitos não existiam, de não entender a língua nativa dos africanos, tinha sensibilidade, tinha bom-senso e, sobretudo, amava os seres vivos. E não os diminuía por serem menos favorecidos que ele próprio.
Periodicamente voltava à Europa, para dar concertos, fazer conferências sobre Bach e publicar seus livros, com a renda dos quais mantinha boa parte de seu trabalho no Gabão. Conseguiu inspirar gerações de médicos que compreenderam o fundamento da profissão que escolheram e buscaram exercê-la tão plenamente quanto ele.
Albert Schweitzer, nascido em 1875 e falecido em 1965, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1952. Seu exemplo de dignidade, seu conhecimento filosófico e teológico e principalmente sua prática de amor ao próximo e respeito à vida (que o fazia cuidar também dos animais) iluminaram muitas gerações.
Todos os formandos dos últimos dez anos sabem, certamente, quem foi Zilda Arns, e ouviram falar da Pastoral da Criança que, com soluções simples, como o soro caseiro, conseguiu diminuir a mortalidade infantil no Brasil e na América Latina. A Dra. Zilda Arns (1934-2010) foi indicada também, em 2006, ao Prêmio Nobel da Paz. Mas sua morte num terremoto no Haiti, país de extrema pobreza e condições geográficas adversas, e onde ela difundia os ensinamentos da Pastoral, a tornam nosso exemplo mais brilhante e significativo.
Há outros exemplos, como os Médicos sem Fronteiras, o antigo Projeto Rondon (que percorreu o Brasil). E há casos isolados de pessoas que abrem mão do conforto e benesses dos grandes centros para ajudar todos os que precisam, neste imenso Brasil, no qual só a desigualdade social é maior que seus contrastes físicos.
Para os que argumentam com a falta de infra-estrutura para o exercício da medicina, mas também não a cobram nem a solicitam, vou contar uma história que aconteceu comigo, na adolescência.
Dos doze para os treze anos, fui gradativamente perdendo não a capacidade de ver, mas a capacidade de distinguir o que via. As imagens se tornaram cada vez menos nítidas, de modo que, mesmo sentando na primeira fila na escola, eu não conseguia enxergar o que estava escrito na lousa. Isto aconteceu num período de tempo muito curto, menos de um mês, e logo fui encaminhada a um oftalmologista, que diagnosticou quatro graus de miopia.
Cerca de um ano depois fomos a Alagoas, terra de meu pai e, em visita aos muitos conhecidos da região (Tingui, município de Água Branca), chegamos à casa de um casal cuja esposa era, diziam todos, “cega”.
Não sei se alguém falou da minha miopia, mas num dado momento, a “cega” chegou perto de mim e perguntou se poderia colocar os meus óculos.
Deixei.
Então, para surpresa de todos, ela começou a rir alto, de alegria. Ora da janela, ora da porta, ela apontava, de um lado, a árvore, da qual tinha se esquecido; de outro, um telhado lá ao longe, de uma casa que ela não sabia que havia sido construída... Ela olhou a própria sala de sua casa com surpresa, descobriu pequenas coisas que não via. Olhou seu próprio rosto no espelho, e passou a mão pelas faces, pelos cabelos, descobrindo, descobrindo, descobrindo...
Mas lá não havia médicos...
Quantos casos simples de resolver teriam diminuído o sofrimento e o desconforto de tantas pessoas, com mais boa vontade de parte dos governantes e dos próprios médicos? Este fato que narrei aconteceu nos anos sessenta. E de lá para cá, não obstante a entrada, no país, de inúmeros aparelhos capazes de diagnósticos precisos, não obstante o número de faculdades de medicina ter aumentado muito, o problema da Saúde em geral continua o mesmo, ou piorou.
O atendimento médico às classes menos favorecidas nos grandes centros ou nos longínquos cantões do país não difere muito. Portanto, se o esforço no sentido de melhorar esse atendimento se dirigiu para estrangeiros, esgotadas as possibilidades de contratação de médicos brasileiros, não aceitem o fato, se não quiserem – mas não censurem ou se oponham aos médicos que vieram. Não esqueçam – sobretudo os que cursaram Medicina em universidades públicas – que os seus anos de estudo foram custeados com os impostos destes sofridos, tão sofridos brasileiros pobres ou miseráveis, das periferias ou dos vilarejos.
Não argumentem, por favor, que os médicos cubanos representam “trabalho escravo” porque repassam a maior parte de seus salários ao governo de seu país. Quando armarem suas árvores de Natal, com enfeites chineses cheios de brilho e distribuírem presentes “xing-ling”, tão modernos e tão baratos, perguntem se não é o trabalho infinitamente mal remunerado, aviltante, que faz o preço de tudo isso ser tão irrisório. Perguntem o que abaixa o custo dos produtos a níveis quase impossíveis.
E sob uma estrela de plástico cheia de glitter, peçam “paz na terra aos homens de boa vontade”.
De boa vontade.


  

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ISRAEL DE ALMEIDA, CORAÇÃO DE SETE CORDAS


No dia 21 de outubro de 2013, Israel Bueno de Almeida, violonista do grupo Izaías e seus Chorões e de muitos outros grupos que fizeram a glória do choro em São Paulo, completou 70 anos. Mandei um e.mail com votos de felicidades, e ele me respondeu com a modéstia lacônica de sempre.

Israel fala pouco, mas é capaz de surpreender com achados verbais sempre adequados, onde não falta um toque espirituoso, quase irônico. Mas acredito que isso seja apenas entre pessoas com as quais mantém um contato mais próximo, pois geralmente, em público, fala pouco. O que me proporcionou a oportunidade de conhecer esse traço pessoal foi o fato de termos trabalhado juntos durante quinze anos, tempo em que implementei um projeto de reestruturação do Arquivo Artístico do Teatro Municipal (que é um arquivo de partituras para uso dos Corpos Estáveis do Teatro).

         Grande conhecedor de música em teoria e, na prática, de música popular, Israel é irmão e parceiro musical de Izaías Bueno de Almeida, bandolinista histórico de São Paulo. Izaías também trabalhou no Arquivo, por menos tempo que o irmão, mas o suficiente para eu poder observar e até traçar um perfil psicológico de ambos. Izaías é loquaz, brincalhão, comunicativo – e faz muito bem o papel de mestre de cerimônias quando o grupo se apresenta. É músico com perfil de solista, enquanto Israel faz a base harmônica, sempre criativa, desenhando baixos surpreendentes e suas correspondentes harmonias. Estas características musicais se manifestam também nas composições de ambos, onde a linha das músicas de Izaías revela sua vocação de melodista, que se destaca em sua harmonia muito rica e bem tradicional. Já a harmonia visivelmente elaborada de Israel completa desenhos melódicos originais e de caráter jazzístico.

         Ao assumir a chefia do Arquivo, verifiquei que os dados biográficos dos músicos contratados precisavam de uma redação mais completa, mostrando melhor a trajetória de cada um. Como já conhecia um pouco todos eles, sabia que Israel tinha tocado no Show do Dia 7, programa de muito sucesso na Rede Record, nos anos 60, e também no lendário O Fino da Bossa, acompanhando Elis Regina e Jair Rodrigues, na mesma época.

Ao reescrever os currículos, começou a difícil missão de fazê-lo lembrar das suas principais realizações musicais, inclusive os muitos discos de que participou. Não acho que Israel quisesse esconder seus trabalhos: parece mais que estava sempre voltado para o futuro, para as coisas que viria a fazer. E tudo isso, aliás, era sempre uma retomada do passado mais brilhante do choro, tradição que o conjunto Izaías e seus Chorões mantêm até hoje. Sua modéstia, acho, deriva da posição de quem faz questão de compartilhar um tesouro com as gerações atuais. E que se coloca como agente dessa tradição, deixando de lado sua própria individualidade e seu papel nesse trajeto.

Começando com o cavaquinho harmônico, Israel passou para o violão tradicional, e dele para o violão de 7 cordas. Aos 17 anos, por indicação de seu mestre (acho que Antonio D’Auria) foi atuar como violonista em regional de uma Rádio, pois era a época em que os regionais passavam a substituir as grandes orquestras, que caracterizam a música ao vivo nas rádios nos anos quarenta e cinqüenta. Não muito mais tarde, já se destacava como violonista (isto não foi ele quem contou). Depois do período em que a MPB atingiu seu auge, atuou no Conjunto Atlântico (anos 70) e esteve morando no Rio de Janeiro, tocando no Cassino da Urca. Quando seu pai morreu, voltou a São Paulo e passou a tocar mais regularmente com o irmão, embora continuasse tocando em gravações.

Nos anos oitenta, por insistência de Cristina Azuma, violonista brasileira radicada na França, participou de um concurso na Martinica. E ganhou o primeiro prêmio com sua belíssima composição Frio e chuva, que essa violonista interpretou. Esta e outras seis músicas suas são atualmente representadas na França pela Editora Henri Lemoine.

         Comecei falando de seu laconismo e de sua verve irônica e espirituosa.

Pois vou terminar assim também.

Ao concluir o curso superior em música, no Dramático e Musical de São Paulo, Israel recebeu como proposta para o TCC (trabalho de conclusão de curso) a composição de uma peça musical. Contou ele que o Professor disse: “E você, escreva alguma coisa”. Ele escreveu uma peça orquestral. O nome? “Alguma coisa”.

Lembro ainda que um dia Israel chegou ao Arquivo contando que, no ônibus, uma moça que queria passar lhe deu um empurrão, dizendo: “Sai pra lá, velho!” Isto porque tem os cabelos completamente brancos desde seus vinte anos.

         Mas a resposta dele foi rápida: “Velho? Ah, se você tiver sorte, vai ficar velha também!”

domingo, 29 de setembro de 2013

CORAL PAULISTANO – BRILHO MAIOR NA MÚSICA BRASILEIRA

      Quero falar, com grande alegria e admiração, da belíssima apresentação do Coral Paulistano, na data de 28 de setembro de 2013, em que este conjunto vocal, criado por Mário de Andrade, retomou sua vocação inicial: a música brasileira, vocal e de câmara. É importante frisar que esta é uma vocação inicial, primordial, uma vocação que deveria ser visceral, que jamais fosse abolida. Entretanto, ela foi sendo gradativamente abandonada. Mas a retomada desta vocação, neste evento ímpar, ainda que breve e pontual, deve ser mantida.
Durante uma hora, as vozes femininas do Coral Paulistano, um contratenor, a pianista Rosana Civile e o cantor-regente Sérgio Werneck resgataram um repertório que hoje em dia raramente é apresentado: quinze peças cantadas em português, de grandes compositores e grandes poetas, além de textos de origem indígena ou afro-brasileira!
Desde Alberto Nepomuceno (1864-1920), pioneiro do canto em português, até João Guilherme Ripper (1959), e contando com a presença do mestre Edmundo Villani-Côrtes, as canções acompanhadas ao piano, ou coral com solistas, mostraram muito do que nossos poetas e compositores criaram com tanto brilho. E esta é a expressão brasileira do canto, tal como Mário de Andrade demonstrou, ao fazer do Coral Paulistano o principal veículo das peças corais já existentes, e das que ainda fossem criadas por nossos compositores.
E esta apresentação mostrou também como o Coral Paulistano, em conjunto ou em cada intérprete, tem rara qualidade vocal.
Posso me manifestar como ouvinte atenta e encantada, e também como ex-Chefe do Arquivo de Partituras do Teatro Municipal. Nessa função, de 1992 a 2004, além de atender a demanda dos Corpos Estáveis, inventariei, com ajuda dos funcionários, os mais de 10.000 títulos de obras existentes na entidade. Depois de tantos anos passados, claro que não posso lembrar, em termos de estatística, os meios de expressão do acervo, mas lembro muito bem que o Coral Paulistano teria cerca de 4.000 títulos, ou mais.
Boa parte dessas partituras, naturalmente, é de obras vocais de grandes autores da música européia, algumas com texto original, outras com texto traduzido. Outra parte é de arranjos de música popular midiática, nacional e internacional, principalmente dos últimos anos, quando se investiu apenas neste gênero. Digamos que sobram entre 600 e 800 títulos no mesmo espírito do ato de criação do Coral Paulistano, em 1936: canto coral em português, tratando de nossos temas mais próximos, de fundo folclórico (que Mário de Andrade chamava de “popular”) e seus correlatos de origem indígena ou afro-brasileira.
Se em apenas 15 músicas, nosso encantamento foi tanto, o que diríamos se pudéssemos ouvir pelo menos metade do acervo original do Coral Paulistano? Este material poético e musical está há tanto tempo esquecido, esperando que se resgate pelo canto o que está apenas no silêncio de uma partitura guardada.
Se alguém sinalizasse a existência de um tesouro, de bens materiais, no fundo do mar ou nas entranhas da terra, não haveria uma enorme corrida em busca desse bem? Por que então, quando se anuncia a existência de tesouros culturais esquecidos, as pessoas com poder decisório não querem ouvir, não querem ver, não querem saber? Que razão oculta tão poderosa é essa, que impede o resgate da imagem de um país, o resgate de uma identidade cultural própria, e ainda cala as poucas vozes que poderiam trazer à tona tanta beleza?
Que tipo de administração cultural deveríamos ter, que percebesse o respeito que as artes e os artistas merecem, como porta-vozes de um povo que, apesar das grandes diferenças regionais, se mantém coeso em termos de língua e musicalidade?
Pena que, às vésperas dos 70 anos de falecimento de Mário de Andrade (1945-2015), e dos 80 anos da criação do Coral Paulistano (1936-2016), se pretenda o fim deste conjunto vocal que tanto orgulho deu e dá aos paulistas. Mas é bem mais triste que em São Paulo e no Brasil nunca se adote a prática de “somar”, e sempre a de “excluir”.
É de triste lembrança a extinção do D.O. Leitura, jornal exclusivamente cultural, que foi tão importante para aqueles que se dedicam a variadas atividades intelectuais. Igualmente triste foi a extinção da Sinfonia Cultura, orquestra pequena em sua formação, em seu marketing quase inexistente, mas tão grande em suas realizações, pois fez mais pela música brasileira, em sua curta existência, que orquestras maiores.
Será que Golias tem medo de Davi?!... 
Nestes últimos anos, a opinião pública foi informada das vantagens de uma Fundação, no sentido de agilizar os trâmites para uma programação mais conveniente. Então, agora que se pode usufruir de mais facilidades administrativas e contratuais, por que não manter os grupos artísticos já existentes?
O Teatro Municipal é de ópera? Sim. Mas já não assistiu manifestações de todo gênero, em seus cem anos? Sim.
       E por último, mas não menos importante, uma pergunta que não quer calar, depois da intenção de se extinguir o Coral Paulistano: “Será que estamos mesmo numa democracia?...”

Coral Paulistano - Obras para coro feminino e piano.
Sábado, 28 de setembro de 2013, às 16h
Sala do Conservatório - Praça das Artes
Teatro Municipal de São Paulo

domingo, 22 de setembro de 2013

ARTE COM SOTAQUE DO NORDESTE

À primeira vista, o ateliê de Aldemir Martins lembra uma feira-livre do Nordeste, com seu colorido, seu primitivismo pitoresco.  Aqui e ali, objetos dos mais variados – obedecendo a uma tônica: todos estão ligados à vida e às viagens de seu dono, um divulgador da arte brasileira por esses mundões afora.
Nascido no Ceará e lá criado, Aldemir traz hoje, em sua arte, sempre um quê do Nordeste – “coisas que estão no meu subconsciente, pois me criei lá e lá vivi até os vinte e dois anos”. Depois, o Sul: “Pois há vinte anos não existia a profissão de pintor. O artista era quase um marginal. No Ceará, era pior ainda. Então vim para o Sul: primeiro o Rio, onde passei um ano; depois, São Paulo”.
Entretanto o Nordeste, com sua força, deixou marcas indeléveis no artista: sua pintura, seu desenho ou sua gravura trazem sempre um pouco da paisagem nordestina, os cangaceiros, a beleza agreste da terra sempre tão seca e tão amada. “Minhas reações são nordestinas. Nota-se isso nos meus quadros: que estou preso à terra, que meu inconsciente está ainda nas coisas que vi e vivi durante a infância e a adolescência”.

O CANGACEIRO DA ARTE


“A princípio fui paisagista – sabe, aquela paisagem seca, com ingazeiros. Mas já comecei rompendo com o Acadêmico. Depois evoluí, mas não mudei de posição”. No Ceará ainda pintava a óleo; depois, por muito tempo ele ficou só nos desenhos e nas ilustrações; só agora, com a descoberta do acrílico, ao qual se adapta muito bem, retomou os pincéis.
Espalhados no meio de livros, enfeites nordestinos, máscaras africanas, sapatos de cangaceiros, estão seus quadros e seus desenhos. Ele já fez quase de tudo em matéria de Artes Plásticas: ilustrações, jóias, cenários, cerâmica. Agora pretende começar Escultura. Uma grande tela está sendo trabalhada. O tema: flores.
“Se eu não fosse pintor, seria vagabundo. Ou um cangaceiro. Isso, um cangaceiro: um revoltado contra o estado de coisas, um lutador. Eu já sou um lutador, só que não luto sozinho; luto com sequazes que talvez nem saibam que estão lutando: os artistas. Sim, a classe dos artistas luta muito”.
Ele sorri, muda de assunto: “Pois é, essas coisas todas eu trouxe de minha viagens. Não, não fui ver nada, não: fui mostrar. Não sou um viajante que nota muito a paisagem: me interessa muito a convivência humana. O que eu trouxe de minhas viagens está aqui, nessa desordem. Mas é que eu sou anti-militar por excelência: nada de ordem. As coisas ficam onde estão e como estão, numa desorganização arrumada. Ali, naquela estante, os livros que consegui sobre o cangaço. Eu precisava aprender tudo sobre os cangaceiros, inclusive roupagem, para fazer meus desenhos e ilustrações, então comprei todos os livros que encontrei que tratassem do assunto”.
Seus cangaceiros são famosos, mas não só eles: os galos, os peixes e muitos outros: “Sou de ter fases com paixões momentâneas sobre um assunto. Sempre, sempre trabalhei assim: posso esgotar e refazer o tema. Tive uma fase em que fiz dezoito retratos de Maria – a mulher imaginária, a mulher de todos nós. Em ilustrações, de que gosto muito, chego a estudar minuciosamente o texto que devo ilustrar. Procuro ser fiel à idéia do autor: para as ilustrações de ‘Os Sertões’ adquiri um livro raríssimo de botânica, no valor de NCr$ 400,00”.
 “Executar um quadro, eu executo com rapidez. Mas, antes disso, elaboro com lentidão, cuidadosamente. Ao contrário dos filhos – um pai sempre gosta deles – eu geralmente não gosto dos meus quadros. Para mim, eles são todos personagens, um mito que eu crio. Quando os começo, tenho em mente que aquele pode ser a minha obra-prima, ou o que todos considerarão assim”.

ARTE RUDE E REQUINTADA


Aldemir se considera socialmente extrovertido, mas na vida privada, calado e tranqüilo, “quase um sorumbático”. E na arte se retrata sua personalidade: “O que faço é sempre simples em temas, mas a linha é requintada, embora haja quem diga que o meu forte são as cores, que eu considero cruas. Minha arte, eu a sinto rude como as comidas nordestinas. Eu sou muito pretensioso. E indócil, como todos os artistas, que não gostam de seguir a trilha de todo mundo, querem um caminho diferente”.
“Nos temas, sou de grandes contradições: pinto flores e cangaceiros. Flores para alegrar a todos, felizes e infelizes; flores em todo lugar, não só nos jardins dos ricos. E assim se volta ao Sermão da Montanha: ‘Olhai os lírios do campo...’ ”.
Aldemir é o artista brasileiro mais conhecido no estrangeiro. E o primeiro artista genuinamente brasileiro a ser premiado pela Bienal: “Mas encaro isso como acidente. Pois é, lá estava a pedra, no meio do caminho, e eu dei a topada. Ou então, eu ia passando com os desenhos embaixo do braço (assim como a gente às vezes passa embaixo da escada de um pintor de paredes e recebe uns respingos de tinta) e o prêmio me caiu na cabeça. Não vejo nisso muitos méritos. Mas até hoje ninguém me perdoou por causa disso”.
“A Arte deve ter comunicação, mensagem, linguagem. É como fazer um bilhete ou carta, romance ou novela. O artista nasce e morre como todo mundo. Sua técnica permanece. Todos farão o que ele fez ou ele fez o que todos os outros fizeram. Com o tempo, a técnica assume sua personalidade. Algum dia, alguém olhará este quadro e dirá: Este é Aldemir Martins”.
“Arte é como o amor: ama-se. Não entendo porque se discute tanto Artes Plásticas. Assim o povo acaba conhecendo muito mais de ouvido que por ver. E um quadro é para ser visto. Artes Plásticas não se explicam com palavras: a imagem é fechada, misteriosa, esotérica. Olha-se e pronto, já se sente tudo. Os pincéis têm a força da baioneta”.

Revista Diário do Povo
Campinas, SP, 16 de março de 1969 – Ano I, nr. 2, p. 40-1

(Ilustrado com fotos de Léo Brilho)

domingo, 31 de março de 2013

CEM ANOS DE SINDICALISMO MUSICAL EM SÃO PAULO



Embora não tivesse o caráter político que norteou muitas das associações de classe dos trabalhadores, nos primeiros anos do século XX, o CENTRO MUSICAL DE SÃO PAULO, entidade criada em 1º. de março de 1913, por iniciativa do maestro Savino De Benedictis, manteve-se atuante durante quase cinqüenta anos. E atuando com sucesso, mesmo diante dos percalços que o país e o mundo enfrentaram nesse período. Mais que isso: frente a todas as mudanças que se deram no país, em relação aos trabalhadores, pôde continuar, através do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado de São Paulo e da  Ordem dos Músicos do Brasil.

O Centro Musical do Rio de Janeiro, entidade criada em 1907 na então Capital da República, teve como primeiro presidente o maestro e compositor Francisco Braga. Eulícia Esteves, historiadora desta entidade, que teve acesso a muitos de seus documentos,  revela que o Decreto nr. 1.637, do presidente Affonso Penna, em 5.1.1907, na letra da lei havia criado os sindicatos e sociedades corporativas, mas na prática, os havia apenas sancionado, pois que então já existiam. 

Durante a gestão do biênio 1911-1912, da entidade carioca, consta que um ofício assinado por 64 músicos de São Paulo, solicitava a criação de uma sucursal do Centro Musical carioca em São Paulo. Isto não aconteceu, nesses termos. A criação do Centro Musical de São Paulo deu-se independentemente da do Rio.

Embora não esteja claramente estabelecido nos textos de um ou outro Centro Musical (Rio ou São Paulo), o título “professores”, dado aos sócios, a exigência de provas de instrumento ou conhecimentos teóricos, as atividades para as quais são estabelecidas as tabelas de pagamento, inferimos que ambas as associações se referiam sempre a músicos com formação minimamente formal, isto é, pessoas capazes de ler as partes e de tocar obras escritas para conjuntos musicais.

O primeiro presidente do Centro Musical de São Paulo foi Savino De Benedictis, que o organizou e fundou, ao lado de outros instrumentistas e professores, como ele. Por essa época, a vida musical de São Paulo, em sua vertente formal, tinha dois eixos: primeiro o Conservatório Dramático e Musical, fundado em 1904, e do qual Savino De Benedictis era professor de contraponto, harmonia, fuga e composição; e o Teatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1911.   

Sendo São Paulo uma cidade em franco crescimento, sobretudo pela implantação de indústrias, tinha um amplo mercado de trabalho para os músicos, pelo estabelecimento de diversas entidades que ofereciam inúmeras opções de lazer à população. Entre elas, os cafés-concerto, os teatros de variedades e principalmente os cinemas, que à época não tinham ainda espaços próprios, com acomodações convenientes, existindo muitas vezes em salas adaptadas. Mas a projeção cinematográfica exigia um acompanhamento musical, e isso ampliava as oportunidades dos músicos. Para evitar que os músicos contratados recebessem pagamentos indignos, os Estatutos dessa entidade estabeleciam uma Tabela com 19 itens subdivididos, especificando claramente a remuneração devida para cada função instrumental, por determinadas horas de trabalho.

Se levarmos em consideração que já no dia 1º. de abril de 1913 o Centro Musical de São Paulo promoveu uma greve de músicos, podemos inferir que os empregadores (ou contratadores de serviços) tinham se negado a cumprir as tabelas, rigorosas e precisas, mas muito justas. Levando-se em consideração que o músico “de fila” (como hoje são denominados os instrumentistas de orquestra) precisa estudar para manter a técnica; deve ensaiar com o grupo, para fazer um trabalho integrado; deve se apresentar vestido com traje social completo e impecável, e ainda faz uso de seu próprio instrumento, fica claro que a paga deve fazer jus a todas essas exigências, implícitas em sua contratação. 

A greve deve ter sido vitoriosa, pois o Centro Musical de São Paulo continuou na ativa, mesmo depois que o cinema ficou sonoro e gerou a dispensa em massa da categoria. Sobreviveu a duas guerras mundiais, e atravessou crises nacionais, como o Estado de sítio, no início dos anos 30, em que reuniões foram proibidas, e depois a Revolução Constitucionalista de 1932. Sofreu a concorrência do rádio e do disco, que mantinham postos de trabalho apenas para uma minoria...

Durante sua existência, o Centro Musical de São Paulo organizou seus próprios espetáculos e também deu suporte musical a eventos encomendados, entre os quais muitos do próprio Teatro Municipal, que alternava essas atividades com as da Sociedade de Concertos Sinfônicos, surgida em 1921 e que se manteve com assinaturas até fins da década de trinta. Em 1933, o Centro Musical estabeleceu assinaturas para sua própria orquestra, passando a se apresentar por conta própria no Teatro Municipal, e continuando a atender a demanda externa. Por exemplo, nos primeiros anos do Departamento de Cultura, mediante contrato de prestação de serviços, apresentava toda a programação musical, intensa e variada, idealizada por Mário de Andrade para atender o projeto de educação musical que o Departamento pretendia. Teve excelentes regentes e grandes solistas, e em sua programação sempre incluía obras de autores nacionais. Esta orquestra foi incorporada pela Prefeitura do Município de São Paulo através da Lei Municipal nr. 3.829, de 28.12.1949, com o nome de Orquestra Sinfônica Municipal.

O Centro Musical de São Paulo é, atualmente, o Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado de São Paulo, reconhecido por Carta Sindical do Ministério do Trabalho e Previdência Social em 1941, filiado à Federação dos Trabalhadores em Empresas de Difusão Cultural e Artística do Estado de São Paulo, sendo declarada entidade de utilidade pública pela Lei Estadual nr. 5.888, de 26.9.1960.

Merecidamente, o maestro e professor Savino De Benedictis recebeu o título de Sócio Honorário, em dezembro de 1934, por sua atuação junto à entidade que fundara. Em 1967 recebeu Troféu da Ordem dos Músicos do Brasil, entidade que, com o Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado de São Paulo, dava continuidade aos objetivos do Centro Musical de São Paulo.