domingo, 22 de setembro de 2013

ARTE COM SOTAQUE DO NORDESTE

À primeira vista, o ateliê de Aldemir Martins lembra uma feira-livre do Nordeste, com seu colorido, seu primitivismo pitoresco.  Aqui e ali, objetos dos mais variados – obedecendo a uma tônica: todos estão ligados à vida e às viagens de seu dono, um divulgador da arte brasileira por esses mundões afora.
Nascido no Ceará e lá criado, Aldemir traz hoje, em sua arte, sempre um quê do Nordeste – “coisas que estão no meu subconsciente, pois me criei lá e lá vivi até os vinte e dois anos”. Depois, o Sul: “Pois há vinte anos não existia a profissão de pintor. O artista era quase um marginal. No Ceará, era pior ainda. Então vim para o Sul: primeiro o Rio, onde passei um ano; depois, São Paulo”.
Entretanto o Nordeste, com sua força, deixou marcas indeléveis no artista: sua pintura, seu desenho ou sua gravura trazem sempre um pouco da paisagem nordestina, os cangaceiros, a beleza agreste da terra sempre tão seca e tão amada. “Minhas reações são nordestinas. Nota-se isso nos meus quadros: que estou preso à terra, que meu inconsciente está ainda nas coisas que vi e vivi durante a infância e a adolescência”.

O CANGACEIRO DA ARTE


“A princípio fui paisagista – sabe, aquela paisagem seca, com ingazeiros. Mas já comecei rompendo com o Acadêmico. Depois evoluí, mas não mudei de posição”. No Ceará ainda pintava a óleo; depois, por muito tempo ele ficou só nos desenhos e nas ilustrações; só agora, com a descoberta do acrílico, ao qual se adapta muito bem, retomou os pincéis.
Espalhados no meio de livros, enfeites nordestinos, máscaras africanas, sapatos de cangaceiros, estão seus quadros e seus desenhos. Ele já fez quase de tudo em matéria de Artes Plásticas: ilustrações, jóias, cenários, cerâmica. Agora pretende começar Escultura. Uma grande tela está sendo trabalhada. O tema: flores.
“Se eu não fosse pintor, seria vagabundo. Ou um cangaceiro. Isso, um cangaceiro: um revoltado contra o estado de coisas, um lutador. Eu já sou um lutador, só que não luto sozinho; luto com sequazes que talvez nem saibam que estão lutando: os artistas. Sim, a classe dos artistas luta muito”.
Ele sorri, muda de assunto: “Pois é, essas coisas todas eu trouxe de minha viagens. Não, não fui ver nada, não: fui mostrar. Não sou um viajante que nota muito a paisagem: me interessa muito a convivência humana. O que eu trouxe de minhas viagens está aqui, nessa desordem. Mas é que eu sou anti-militar por excelência: nada de ordem. As coisas ficam onde estão e como estão, numa desorganização arrumada. Ali, naquela estante, os livros que consegui sobre o cangaço. Eu precisava aprender tudo sobre os cangaceiros, inclusive roupagem, para fazer meus desenhos e ilustrações, então comprei todos os livros que encontrei que tratassem do assunto”.
Seus cangaceiros são famosos, mas não só eles: os galos, os peixes e muitos outros: “Sou de ter fases com paixões momentâneas sobre um assunto. Sempre, sempre trabalhei assim: posso esgotar e refazer o tema. Tive uma fase em que fiz dezoito retratos de Maria – a mulher imaginária, a mulher de todos nós. Em ilustrações, de que gosto muito, chego a estudar minuciosamente o texto que devo ilustrar. Procuro ser fiel à idéia do autor: para as ilustrações de ‘Os Sertões’ adquiri um livro raríssimo de botânica, no valor de NCr$ 400,00”.
 “Executar um quadro, eu executo com rapidez. Mas, antes disso, elaboro com lentidão, cuidadosamente. Ao contrário dos filhos – um pai sempre gosta deles – eu geralmente não gosto dos meus quadros. Para mim, eles são todos personagens, um mito que eu crio. Quando os começo, tenho em mente que aquele pode ser a minha obra-prima, ou o que todos considerarão assim”.

ARTE RUDE E REQUINTADA


Aldemir se considera socialmente extrovertido, mas na vida privada, calado e tranqüilo, “quase um sorumbático”. E na arte se retrata sua personalidade: “O que faço é sempre simples em temas, mas a linha é requintada, embora haja quem diga que o meu forte são as cores, que eu considero cruas. Minha arte, eu a sinto rude como as comidas nordestinas. Eu sou muito pretensioso. E indócil, como todos os artistas, que não gostam de seguir a trilha de todo mundo, querem um caminho diferente”.
“Nos temas, sou de grandes contradições: pinto flores e cangaceiros. Flores para alegrar a todos, felizes e infelizes; flores em todo lugar, não só nos jardins dos ricos. E assim se volta ao Sermão da Montanha: ‘Olhai os lírios do campo...’ ”.
Aldemir é o artista brasileiro mais conhecido no estrangeiro. E o primeiro artista genuinamente brasileiro a ser premiado pela Bienal: “Mas encaro isso como acidente. Pois é, lá estava a pedra, no meio do caminho, e eu dei a topada. Ou então, eu ia passando com os desenhos embaixo do braço (assim como a gente às vezes passa embaixo da escada de um pintor de paredes e recebe uns respingos de tinta) e o prêmio me caiu na cabeça. Não vejo nisso muitos méritos. Mas até hoje ninguém me perdoou por causa disso”.
“A Arte deve ter comunicação, mensagem, linguagem. É como fazer um bilhete ou carta, romance ou novela. O artista nasce e morre como todo mundo. Sua técnica permanece. Todos farão o que ele fez ou ele fez o que todos os outros fizeram. Com o tempo, a técnica assume sua personalidade. Algum dia, alguém olhará este quadro e dirá: Este é Aldemir Martins”.
“Arte é como o amor: ama-se. Não entendo porque se discute tanto Artes Plásticas. Assim o povo acaba conhecendo muito mais de ouvido que por ver. E um quadro é para ser visto. Artes Plásticas não se explicam com palavras: a imagem é fechada, misteriosa, esotérica. Olha-se e pronto, já se sente tudo. Os pincéis têm a força da baioneta”.

Revista Diário do Povo
Campinas, SP, 16 de março de 1969 – Ano I, nr. 2, p. 40-1

(Ilustrado com fotos de Léo Brilho)

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