domingo, 1 de agosto de 2010

MÚSICA E PINTURA, UNIDAS NO TEMPO

No começo era o som bruto. Aos poucos, numa intensa busca da harmonia, surgiram alguns rudes instrumentos musicais. Depois, apareceram as primeiras representações desenhadas do êxtase musical, relacionado com a dança, parte de um cerimonial mágico do homem das cavernas. Era o início, há seis mil anos, das relações entre a pintura e a música.

Música e pintura sempre estiveram em interação constante. Isto, apesar das diferenças fundamentais de estrutura. E também das relações diferentes mantidas por criador e receptor de cada uma delas. Historicamente, a pintura serviu muito mais à música do que vice-versa. Inclusive, documentando a vida musical anterior à invenção da escrita desta.

Num painel de seis milênios de artes visuais, a música está sempre presente: como representação da atividade musical em si (instrumentos, intérpretes e suas variadas combinações); como representação da sua função social nas “cenas de gênero” e ainda como ponto de partida do pitagorismo, com toda a influência deste nas outras artes e ciências. Mais recentemente, ocorreu a transfiguração pictórica da música em cores e movimentos tidos como rítmicos.

Na arte das cavernas, a música está relacionada com a dança: feiticeiros invocadores ou suplicantes dançam em suas cerimônias. Objetos de civilizações antigas trazem em sua decoração instrumentos como a harpa, a lira, o tamborim, o oboé duplo, os aulos helênicos, flautas de cujas origens existem diversas versões lendárias, inclusive a de Orfeu.

O matemático e filósofo Pitágoras, de Samos, foi iniciado na essência da música através das teorias órficas. Com um monocórdio, ele determinou experimentalmente as relações numéricas entre os sons, estabelecendo a base da música matemática. A concepção numérica manteve-se por muito tempo na mística e na Astronomia, mas os números não tinham o mesmo significado abstrato que têm para nós: cada número tinha a sua representação espacial, uma extensão que aludia a uma forma geométrica. Os números, manejados, erigiam realidades espaciais, criando a beleza autônoma, independente de ser um atributo: a beleza harmônica. A concepção numérica levada às últimas conseqüências pelos gregos influiu pouco na ciência, mas foi fundamental para o desenvolvimento da arte grega e renascentista, cativando a imaginação de artistas de todas as épocas.

Das nove musas gregas, Euterpe (“deleite, a que encanta”) é a titular da música. Está presente nos vasos gregos como no Parnaso, de Rafael, ou no Musas Inquietantes, de Giorgio de Chirico. A décima musa dos gregos foi Safo (630-570 A.C.), poetisa e musicista; uma gravura anônima que ilustra um dos capítulos do Livro das Mulheres mais Famosas, de Boccacio, representa-a tocando alaúde e tendo aos pés outros instrumentos da época.

Os romanos criaram pouco em termos de música, assim como nas outras artes e ciências, mas adotaram o variado instrumental dos povos que despojaram. O Tríptico das Bodas Aldobrandinas e murais de Herculano e Pompéia mostram os mesmos instrumentos dos etruscos e dos gregos, mais os herdados das conquistas – inclusive o órgão hidráulico, vindo de Alexandria, que na Idade Média tornou-se peça base da música religiosa.

O SOM DOS ANJOS MEDIEVAIS

A evolução da música no período medieval pode ser seguida através de afrescos e pinturas bizantinas e das miniatura policromadas dos manuscritos medievais, que servem de mostruário dos instrumentos da época. A obra medieval que reúne mais melodias e mais instrumentos é o Códice das Cantigas de Santa Maria, do Rei Alfonso X, o Sábio, manuscrito do século XIII conservado na Biblioteca do Escorial. A música, de versão fiel e notação perfeita, é toda ilustrada por miniaturas e vinhetas, que mostram mais de trinta instrumentos.

Os anjos munidos de trombetas são personagens obrigatórios das representações medievais do Apocalipse. Já os coros musicais angélicos estão presentes em muitas obras, durante uma larga faixa de tempo, desde a Coroação da Virgem, de Giotto. O Políptico do Cordeiro Místico, de Hubert e Jan van Eick, terminado em 1432, foi um marco na história da pintura; em um de seus painéis, anjos músicos acompanham Santa Cecília, que toca órgão. Fra Angelico, Piero della Francesca, Stephan Lockner, Mabuse, Hans Memling, Melozzo de Forli, Zurbarán, El Greco, Agostino de Duccio (escultor), Lucca della Robbia – todos fizeram obras sacras com representações de músicos-anjos; e Mathias Grünewald, o maior e mais terrível de todos os pintores góticos místicos, criou a obra-prima Políptico de Isenheim, onde o painel, que representa um concerto de anjos, inspirou uma Sinfonia a Paul Hindemith, autor do século XX que escreveu ainda uma ópera, Mathis der Mahler, sobre a vida do pintor.

Durante o Renascimento, os maiores pintores, principalmente na Itália, eram também músicos. Leonardo da Vinci apresentou-se na corte de Ludovico, o Mouro, em Milão, superando todos os outros músicos ao cantar acompanhado da lira. Da mesma forma, Giovanni Bellini, Rafael, Melozzo de Forli, Carpaccio, Michelangelo, Piero di Cosimo, Ticiano, Giorgione, Sebastiano del Piombino, Giovanni di Udini, Pardemone, Passano, Bonifacio, Tintoretto e Paolo Caliari, o Veronês – todos eles tocavam algum instrumento, participavam de concertos e colocavam a prática da música em muitos de seus quadros, às vezes como tema principal (como o Concerto Campestre, de Giorgione, ou as Bodas de Caná, do Veronês, de 1563, onde os músicos são as figuras dele próprio, de Tintoretto, Bassano e Ticiano). Alemães, flamengos e holandeses também se auto-retrataram como músicos: Dürer, no Retablo Jobach, de 1500, e Teniers, o Jovem, tocando contrabaixo com a família.

MÚSICA E PINTURA, LIVRES

Velazquez interpreta o sentimento musical do espanhol em Os Músicos, onde a própria composição dos rostos esboça uma lira imaginária. O mesmo sentimento musical se mantém à tona durante o período em que predominou o quadro de gênero, onde a veia dos artistas é às vezes popularizante, às vezes moralizadora. Entre os holandeses discípulos de Frans Hals prevalece a primeira linha; Pieter Codde, Jan Miense Milenaer, Judith Leister e Adriaen von Ostade fizeram diversas variações em torno do tema O Ouvido. Moralizador é, por exemplo, O Triunfo da Morte, de Brueghel, Jan Steen prefere o quadro de gênero, retratando lares burgueses, e Gerard van Honthorst escolhe o ambiente cortesão; Jacob Ochervelt, Gaspar Netscher e Philip Mercier colocam em suas pinturas musicais personalidades da alta sociedade; a partir daí, Watteau e outros difundem “as festas galantes”.

Compor música inspirada em quadros é processo típico do Ultra-romantismo. Liszt compôs diversas obras baseadas em pinturas, como o Totentanz, inspirado na obra-prima de Orcagna, O Triunfo da Morte. Movimentos musicais posteriores também o fizeram, como o realista (Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky) e o impressionista (L’Ile Joyeuse, de Debussy, criado sobre a obra-prima de Watteau – L’Embarquement pour l’Ile de Cythère).

A partir do Impressionismo, as relações entre música e pintura se mantêm cada vez mais estreitas, enquanto a pintura liberta a cor do desenho, a música libera o som da harmonia tonal. Manet, Cezanne, Toulouse-Lautrec e Debussy testemunham isso claramente. Matisse foi músico; Dufy, Picasso, Braque, Kandinsky, Klee e Mondrian viveram em ambiente musical e têm a música como uma constante em sua obra, que a literatura especializada adjetiva com termos musicais. Assim, Matisse cria em seus quadros “sonoras polifonias cromáticas”; o Violino Vermelho, de Dufy, é exemplo do “cromatismo musical”. Picasso se esforça para criar em pintura uma “linguagem musical”. Braque evoca J. S. Bach em tubos de órgão e Kandinsky, em O Espiritual da Arte (1910), escreve que “os olhos são martelos e a alma um piano de muitas cordas, e o artista é a mão que toca”.

Em torno de Kandinsky e Klee aglutina-se um grupo de músicos e pintores vienenses: Berg, Webern e Schonberg. Este, um renovador em música que é também pintor. E a música e a pintura do século XX prosseguem em suas trocas de recursos – a música emprestando para a pintura sua utilização do inconsciente, a pintura emprestando para a música sua caracterização concreta e espacial – que cada vez mais as aproximam e estreitam, inclusive através da utilização de recursos audiovisuais da eletrônica. As artes cinética, óptica, telearte são provas de que as possibilidades das artes são variadas e infinitas, assim como variada e infinita é a capacidade de renovação das pessoas.

Artigo publicado in Arte Hoje, (revista mensal) ano 3, nr. 27, setembro de 1979, pp. 36-38, ed. Rio Gráfica e Editora.

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